(não ficcionado)
A avó Estefânia era uma mulher de fibra. Ria com parcimónia – “muito riso, pouco siso!” – dizia. Vestia saia preta, em escrúpulo ao luto, pela perda prematura do marido, e usava-a comprida até aos pés. Guardava nos seios, embrulhado num lenço, o dinheiro para negócios que lhe surgissem. Comprava cabritos, que abatia e desmanchava. Vendia depois a carne, de casa em casa, pelas aldeias da serra; tanta vez para “matar fraquezas”, como dizia. Por vezes, só pelo São Miguel (tempo das colheitas) recebia o pagamento, e na maior parte dos casos em géneros, como azeite, milho ou feijão. A vida era difícil e a carne era um bem quase inacessível à mesa; só uma doença, ou uma cerebração familiar especial merecia repasto melhorado. Chegou a fazer contrabando (como qualquer homem) de e para a Galiza (Espanha), no tempo da fome.
A avó Estefânia não faltava a uma festa ou romaria e consigo levava a filha, Alice, sempre bem vestida, alegre e de sorriso despertador de encantamentos vários. Não havia moço, educado, ou “mariola”, e muitos deles fidalgos, que no terreiro da festa não a assediassem com um piropo ou promessa de casamento. Claro, sempre com muito respeitinho. A mãe, Estefânia, sempre do seu lado, era mulher para desandar um par de bofetadas a quem ousasse ultrapassar os limites da elegância de trato ou de má educação para com a filha. Da avó Estefânia levava nas trombas fosse quem fosse, bastava para isso que um mau comportamento ou atrevimento desmedido o justificassem, principalmente se ofensivo para com a filha, que sempre de perto protegia como “cão de guarda”, porque o orgulho nela era muito e não a queria “pão para qualquer boca” e muito menos vítima de qualquer abuso ou excesso de algum galanteador espevitado.
Certa vez, na festa da Senhora da Abadia, cantava-se ao desafio no terreiro. A avó Estefânia, de braço dado à filha, abeirou-se do aglomerado de pessoas que ouviam a cantoria, sempre apimentada nos versos, e quase sempre de provocação entre os cantadores; sairia melhor aquele que mais afrontasse e desarmasse o parceiro.
Às tantas, no calor da desgarrada, um dos protagonistas da cantoria, e sem que se previsse, ignorou o parceiro e voltou-se antes para o auditório que o circundada no terreiro. E numa tentativa de elevar os seus dotes de cantador/versejador e em provocação brejeira às mulheres presentes canta-lhes, ao toque compassado da concertina:
"Sete vezes fui casado
Sete mulheres recebi
P´ra vos falar a verdade
´inda estou como nasci"
Não apreciando a cantoria, na forma de abordagem e no conteúdo da letra, porque a achando provocadora a atentatória no respeito às mulheres presentes, incluindo ela e a filha, a avó Estefânia, que nunca tinha cantado ao desafio, abeirou-se do cantador, esperou o compasso de entrada do toque da concertina e respondeu-lhe em bom timbre e afinação:
"No terreiro da Abadia
Não demonstra haver justiça
Ou tu nasceste capado
Ou te cortaram a pi**"
O cantador gelou, ficou sem versos, e a cantoria ficou por ali.
E esta quadra/resposta ao desafio ainda hoje é lembrada, quando se fala da velha Estefânia, ou dos cantares ao desafio nas festas e romarias do passado.