Crónicas : 

A petinga e a cavala

 
A cavala - aquela que já tem o porte ideal para ser pescada - investe na caça da petinga. E a petinga (ou a sardinha-miúda) - aquela que ainda está muito abaixo dos 14 centímetros de comprimento mínimo para ser pescada - distribui-se em pequenos, medianos e grandes cardumes pelo corpo-vivo do meu velho-amigo-estuário; como que a escolher vantagem, neste ou naquele padrão de disposição, para fugir ao caçador que se ensombra no fundo. Nesta pequena cadeia-alimentar, visível a olho-nu pelo temporário observador, não há tempo para seleccionar ou acumular conversas, nem amizadezinhas. É zona de acção, onde a linguagem é substituída pela conjuntura possível, bem como pela melhor aptidão momentânea; e a esplanada-amovível - obviamente - o melhor lugar para apreciar a Natureza. A petinga - neste panorama - é uma verde-fluorescência, às riscas serpenteantes, dentro do verde-baço-das-águas; praticamente um brilho sinaleiro imiscuído às caóticas correntes de Sueste. É empurrada para trás (ou para frente) em rodopio e em rota de colisão com o movimento apetecido, e ao que parece numa sublime desordem que apenas vem para separar e mutilar os agrupamentos em movimentos desesperados. Estranho. Mas enquanto vai chegando fragmentada ao antigo ancoradouro, vai parando e vai crescendo tão bem encurralada contra o ângulo recto do obstáculo; e é aqui que a cavala ataca. Pois é, as sombras cinzentas que, noutros percursos, inofensivas se faziam, agora são punhais lançados em direcção ao céu. É a cavala que mostra os dentes e que faz respingar a petinga por toda a parte. A sorte (ou o azar) é que também há um isco reluzente pendurado numa cana mesmo no meio dos salpicos, e que a cada esticão puxa a cavala para a asfixia do chão. Então, eis que "O peixe deu à costa. Vamos salvá-lo" - terá pensado um casal de estrangeiros que por ali passava. Só que de repente: "Eiii!" - ouve-se o grito, misturadamente complacente e indignado, do pescador-de-ocasião; e a cavala morre na praia (ou no cimento).

Quando se frequenta há demasiado tempo um determinado lugar, é inevitável que se passe a conhecer o melhor e o pior dos outros frequentadores desse lugar. Por isso, no que toca à ingestão da minha dose diária de cafeína, gosto de saltitar - agora no verão - de esplanada em esplanada. Acho que, no fundo, é uma procura de liberdade, ou uma forma de afastamento à amizadezinha-de-circunstância (a que é imperativa e que aborrece); aquela que por educação (e por falsa simpatia) só te obriga a falar palha e a ouvir palha; aquela que te faz perder tempo e que não te deixa ler um livro-de-papel (ou um jornal-de-papel); aquela que te tapa as boas-vistas e que te embrutece as boas-ideias. Portanto, antes que um simples "bom dia" descambe para um "posso me sentar aqui?" (para que se fale de "eu-cá-isto" ou "eu-cá-aquilo"...), evito a todo o custo conhecer os demais habitués dos lugares que frequento. Esta técnica rotativa de esplanadas, de facto, ameniza o grau de intimidade - muitas vezes tóxica entre frequentadores - que se vai impondo a cada ida ao mesmo lugar. Mas, por outro lado, indo a mais lugares - numa linha de tempo contínua (e na falta de um infinito número de esplanadas) - o efeito torna-se perverso e completamente contrário ao desejado: ou seja, aumenta a probabilidade de aumentar o número de amizadezinhas atreladas - lá está - às crescentes (e carcereiras) intimidadezinhas . Não há escapatória (zinha, já agora).

Não é assim tão fácil diluir o volume de socialização-diária pelas horas do dia. Ainda que quase toda a gente goste de gente, a predisposição para se estar verbalmente activo dispersa-se - quotidianamente - de maneira diferente de pessoa para pessoa. Há quem funcione a uma só velocidade (ou a uma só leve-concentração constante); estes eu diria que são os sócio-universais. E depois há quem precise de 2 ou 3 velocidades (ou de 2 ou 3 grandes intercaladas-concentrações); estes eu diria que são os sócio-selectivos. Contudo, acontece que muitas vezes a conversa-profunda chega de rompante aos sócios-universais, e estes bocejam como preguiças drogadas. Outras vezes é a conversa-leve que chega de rompante aos sócio-selectivos, e estes - ahhh! - também bocejam como preguiças drogadas. Algures a meio - e dependendo da sorte de quem nos calha na rifa desta insuficiência-monótona - estará a virtude de uma conversa sem o vício da hipocrisia (de bajular ou de insultar). Por exemplo, um encharcanço de relevâncias (ao assunto) destrói a leveza da ignorância, e o peso desta percepção pode ser demolidor para qualquer um dos lados. E um encharcanço de banalidades logo após um encharcanço de solidão-indesejada pode até trazer equilíbrio à "sã-convivência". Depende. Acredito, por isso, na importância (ainda que imoral) de estar desejadamente-só no processo de diálogo; afinal, é condição "sine qua non" para que estejamos livres da nefasta-interferência e prisioneiros da vampírica-inspiração. O que, no fim das contas, é tudo o que importa no mundo-de-superfície (tanto das ideias como da cultura). Nada como ter a "sabedoria" de colar fragmentos (ou retalhos) - ouvidos e lidos deste ou daquele - para que uma suposta criatividade (ou um suposto conhecimento), que julgamos realmente possuir, se manifeste o mais escandalosamente possível (onde quer que seja). Acontece frequentemente (aos melhores e aos piores).

Como quem vê confortavelmente o encontro drástico da petinga e da cavala (e do pescador) - lá está - à superfície, assim serão outros aproximados submundos-de-superfície vistos por outras observações; e que em verticais viagens borbulham outras ideias e outros conhecimentos. E perante este facto, 2 opções podem ser tomadas pelo "criativo" e "culto" observador: ou fica satisfeito com aquilo que lhe é dado a ver; ou tenta ir mais longe. Enfim, dentro e fora das esplanadas-da-vida, a conversa é um ecossistema. Porque, ao-fim-ao-cabo, o que importa neste jogo-das-cadeiras é a sobrevivência (sócio-mental?): ou queremos escapar ou queremos caçar. No que diz respeito à escapatória (do transtorno), quando se aproximam da minha beira os enfardados de metadona - que circulam nos estrados por onde pisam todos os pés de mesa desta cidade - a minha estratégia é a de me levantar e de me ir embora. Todavia, as amizadezinhas já foram feitas, e é matemático que um pobre e solitário desgraçado - que por ali anda - me faça sempre a mesma pergunta: "Tem um cigarrinho?"; que nunca tenho porque não fumo. Pobre desgraçado este, porém, que em dias de recebimento da pensão (de invalidez, presumo), tão livre se vê de toda e qualquer solidão ao arrastar (pela cauda) um bando de aves-de-rapina (de semelhante laia entorpecida, claro); e que ainda tem a irónica generosidade de me perguntar: "Quer um cafezinho? Eu pago, eu pago". Só rindo. Já noutro extremo, no que diz respeito à caça - caramba -, que coisa tão bonita é a nova empregada da mais recente esplanada que frequento. Moreninha, perfeitinha e os calções - ai os calções pretos - apertados e modelados à fina pele da juventude. E porque a nossa troca de palavras nunca passou de frases curtas, do tipo "É um café se faz favor!"; "Ora aqui está!"; e "Obrigado!", jamais lhe apalpei convenientemente o sotaque. Presumi que, tendo em conta o fenótipo exibido, fosse originária dos trópicos; pelo menos, até ao momento em que alguém lhe fez a despudorada pergunta: "Ouve lá, tu és brasileira, não és?". Foi então que levantei as orelhas e ouvi a resposta: "Não! Sou moldava".

 
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Enviado por Tópico
Ombuto
Publicado: 15/08/2018 18:44  Atualizado: 15/08/2018 18:44
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