Crónicas : 

O abismo negro

 
Os abismos, por excelência, encontram-se sob a forma de buracos-negros espalhados pela escuridão do espaço (exterior). Isto, claro, se uma dolorosa (ou mortal) queda dentro de um precipício não nos fizer ter uma noção bem mais real e bem mais terrena sobre estes fenómenos. Friedrich Nietzsche dizia que quando se olha muito para um abismo, o abismo também olha para nós. Isto é, um abismo pode inclusive ser vivo e interior, e pode estar a rodopiar incessantemente no centro do peito; na parte superior, logo abaixo do pescoço - precisamente para onde apontamos o dedo quando dizemos "eu". Sim, os abismos são múltiplos, diversos, variados e presentes em todas as escalas. O corpo humano que morre, por exemplo, é uma supernova-de-carne; a estrela-baça e extinta que consome, em tristeza, a energia de quem fica.

Enfim, quando eu era miúdo tinha uma catrefada de jogos-de-tabuleiro - quase todos da célebre marca Majora - que se foram acumulando na estante de brinquedos do meu quarto pintado de verde-abacate (acreditem). Não me lembro quem me ofereceu cada um deles, nem com que idades os fui recebendo, e em que alturas do ano os recebi; se foi no Natal, nos meus anos ou no Dia da Criança. Lembro-me de vê-los lá empilhados uns em cima dos outros, na penúltima prateleira de pinho. Os meus amigos ficavam de pescoço esticado a contemplar a diversidade de títulos (e cores) em exposição, e sempre na esperança de poderem escolher para jogar aquele que fosse, primeiramente, o mais esteticamente apetecível (conforme o gosto de cada um, claro). Só numa segunda fase, depois de ultrapassadas as dificuldades técnicas e funcionais na selecção e experimentação de alguns, é que decidíamos (democraticamente?) qual aquele que estenderíamos definitivamente no velho chão de alcatifa industrial cinzenta.

O meu melhor amigo quando ia à minha casa - era escusado - insistia sempre para que jogássemos o "Alerta no Espaço - A fuga de Cygnus", do "franchising" (e "merchandising") "O Abismo Negro" ("The Black Hole"). Um filme pouco conhecido de 1979 dos estúdios Disney. Pelo conhecimento que este meu vizinho - do prédio em frente ao meu - ostentava sobre as personagens, tanto humanas como robóticas, presumo que ele (e ao contrário de mim) já tivesse visto esta aventura cósmica no grande ecrã. Muito provavelmente a estreia deve ter sido exibida no único cinema infanto-juvenil que existia na cidade. Lugar, aliás, de eleição para as matinés cinéfilas dos putos (com as respectivas mães) aos Domingos à tarde. Sem esquecer do precioso desconto nos bilhetes que auferíamos se levássemos o Correio da Manhã e o mostrássemos à entrada ao porteiro de serviço. Porém, com alguma inveja - e por qualquer motivo - eu não estive presente no dia da projecção da cobiçada película. Por isso, fui-me contentando somente com as peripécias jogáveis do dróide V.I.N.C.E.N.T. (e dos restantes companheiros), e sempre com regras um pouco próprias e inventadas a cada partida.

Além do famoso "Monopólio" e das antigas "Damas", o "Alerta no Espaço" acabou por ser dos poucos que sobraram cá por casa, e que resistiram ao desgaste do tempo (até hoje). Isto porque, entretanto, as consolas davam os seus primeiros passos no mundo dos brinquedos; e como é sabido não tardaram a dominar todas as brincadeiras e passatempos. O meu primeiro micro-computador - um Timex 2048k - mais o seu coadjuvante reprodutor de cassetes e as respectivas fitas magnéticas, chegaram definitivamente para destronar qualquer coisa que entretivesse os olhos e a mente. Deste modo, e quase que imperceptivelmente, foram desaparecendo as velhas caixas coloridas que compunham o tão multi-facetado mosaico na decoração da minha assoalhada virada para o rio.

E foi precisamente por causa deste jogo que sempre tive pena de nunca ter visto o filme; principalmente porque a máquina-de-entretenimento (da altura) explorava (e vendia) bastante este tipo de conteúdo audiovisual. E a temática do Universo inexplorado teimava em fascinar a minha geração. Além disso, a arte futurística - que desbotava da capa daquele estojo - também nunca ajudou a esquecer que ainda me faltava ver este clássico (quase "underground") da ficção científica. O que é facto é que a coisa ficou adormecida, até que o meu primo (mais novo) - na sua impetuosa curiosidade dos 8 anos - começou a rebuscar nos armários da sala. Tanto procurou que acabou por encontrar o envelhecido tesouro algures entre umas matracas artesanais e uma máscara de mergulho. Claro está, acabei por ser obrigado (como quem diz) a montar a nave tridimensional, a estender o enorme tabuleiro de papel (que mais parece um poster) sobre a tijoleira, e a baralhar as 54 cartas (de verso preto). E para rematar, como não encontramos as instruções - e desta vez com ajuda de um cérebro fresco do século XXI -, os mandamentos foram mais uma vez inventados à medida das nossas lógicas conjugadas.

A verdade é que o reviver de todo aquele ambiente espacial, montado e impresso em cartão, voltou a despertar a minha vontade de ver a longa-metragem. Pois bem, com os recursos de uma ligação à internet não foi difícil (como é óbvio). Utilizei-me do "streaming" e assisti às imagens reproduzidas no monitor do meu pc (com som dobrado em português do Brasil). E de caminho ainda saquei as instruções do "Alerta no Espaço" (numa daquelas páginas retro dos anos 80) para aprender a jogar o dito-cujo como manda o figurino. Mas a grande surpresa foi ter ficado a saber - durante a pesquisa - sobre a raridade do jogo; parece que tem valor para coleccionadores.

Concluindo: o "Abismo Negro" não se destacou muito na época porque - convenhamos - não teve qualquer hipótese (nem tem) quando comparado com os seus mais directos rivais cronológicos: ou seja, o primeiro "Alien" e a primeira "Guerra Das Estrelas". Mesmo assim foi indicado para 2 Óscares da Academia; e um deles pela melhor fotografia que, faça-se justiça, é sublime. O roteiro é que fica muita aquém das expectativas. Senão veja-se: partindo do princípio de que o destino de quem cai num buraco-negro é mais estranho do que a morte-instantânea, a frenética acção decorrida a bordo da nave Cygnus tenta ficcionar - exactamente - sobre o que poderia acontecer se entrássemos vivos num turbilhão deste calibre. Vivos, leram bem. Todavia, dentro do rigor científico possível para os finais da década de 70, a abordagem ao assunto volta a percorrer os mistérios da Existência. E tal como na "Força" de George Lucas, centra-se igualmente na batalha entre o Bem e o Mal (para não variar). Dá-nos a pseudo-religiosa e quase ingénua visão de um Inferno para lá do vórtice; aberto não só a humanos mas também - e pasmem-se - a robôs maléficos. A imagem de Maximilian (um robô) - no final - a imperar no reino das trevas é, no mínimo, uma bizarria poética.

 
Autor
Ombuto
Autor
 
Texto
Data
Leituras
2909
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Ombuto
Publicado: 28/07/2018 17:49  Atualizado: 28/07/2018 17:49
Da casa!
Usuário desde: 27/03/2011
Localidade: Angola
Mensagens: 351
 Re: O abismo negro
Open in new window

Enviado por Tópico
Ombuto
Publicado: 28/07/2018 22:49  Atualizado: 28/07/2018 22:49
Da casa!
Usuário desde: 27/03/2011
Localidade: Angola
Mensagens: 351
 Re: O abismo negro