Era o ano de 1514, Orfeo Angelucci era um exímio construtor de alaúdes. E isso significava dizer que ele não era apenas um artista. Mas um artista entre os artistas! O alaúde era um dos instrumentos mais amados e respeitados daquela época. A música era tudo! Todo o lazer humano resumia-se à música... Os nobres ouviam música. Os plebeus ouviam música. Os mendigos ouviam música. Os árabes, cartagineses, mouros, gregos e troianos ouviam música. Ouvia-se música nos bosques. Ouvia-se musicas nos castelos, nas choupanas, na cama, na latrina, sentado no urinol, nos calabouços, no quinto-dos-infernos; ainda que fosse só de uma gaita de boca. Conquanto, ouvia-se música! Por isso, Orfeo Angelucci era o mestre dos mestres.
Mas um dia, como nada é perfeito, eis que apareceu, Donnato Pacciolo, e superou o mestre. Orfeo foi esquecido e largado às traças. Ninguém mais lhe fazia encomendas, e Angelucci caiu no ostracismo.
E assim, os anos se passaram, e o grande mestre dos alaúdes tornou-se apenas mais um morador pulguento de Salerno. Nápoles inteira reverenciava Donnato, talvez, toda a Europa. E enquanto isso, a fome batia nas portas e janelas de Orfeo, como se fosse um insistente e cabisbaixo andarilho, envolto numa escura e fétida capa preta, que vinha sorrateiramente no inverno assaltar o seu estômago.
O mundo estava mudando. Os homens dominavam os oceanos, e novas terras nasciam. Angelucci sentia-se velho e ultrapassado ( trinta e seis anos naquela época era um ancião, ou um homem de sorte ). Ele sabia que era questão de tempo para que novas técnicas fossem descobertas, e melhores e mais belos instrumentos fossem criados, acabando de vez com tudo o que ele um dia foi.
E num dia de inverno, daqueles onde os nórdicos facilmente fariam careta, eis que o vento soprara na testa de Angelucci um ou dois cristais de gelo, enquanto a sua última refeição era assaltada por ratos famintos – um beiço de castor salgado e duas miseráveis amêndoas – que Orfeo em absoluto desespero resolveu vender a sua alma ao capeta!
No inicio da primavera daquele mesmo ano, quando o gelo ainda derretia. Orfeo colocou em prática o seu disparatado plano. Como ensinado a ele por Calandra Faedra, uma velha bruxa da região, que um dia lhe encomendou um saltério, ele deveria encontrar um cemitério de esquina, onde, na lua nova, deveria recitar determinado conjuntos de palavras de trás pra frente, entre outras estripulias, para que pudesse convocar o esmolambado, o imundiça, o canhoto, e outros nomes citados pela própria bruxa enquanto ria e se engasgava de um apelido a outro.
Encontrar um cemitério de esquina na idade média não era nada difícil. Morrer era moda. Morria-se de gripe, de peste, de unha encravada, de arrancar dente, morria-se por que não havia nada melhor a se fazer, morria-se até por desaforo. Estar vivo, e bem, é que era uma raridade! E foi desse modo, que lá esteve Orfeo, oferecendo a sua alma ao já referido ser das trevas. Era sexta-feira, como de praxe, e ele ficou a pular na esquina feito um doido. Começou ao meio-dia, e ainda as seis horas da tarde estava lá, com muito suor na testa e uma vassoura que usava para varrer o chão, como parte do estranho e duvidoso ritual. Calandra Faedra além de bruxa, era uma conhecida gozadora local. Não seria nenhuma surpresa que ela estivesse fazendo hora com a cara de Orfeo, bem ele pensou. É também interessante observar que naqueles tempos, a densidade demográfica era bem menor que a dos dias de hoje, e ninguém deu de cara com a estranha e dançante figura na frente daquele cemitério, ou Orfeo teria sido internado no manicômio mais próximo, como grande parte dos seus contemporâneos, e a estória acabaria aqui.
Como não acabou, as oito horas da noite, que por aquelas paragens ainda era dia, uma figura se aproximou de Orfeo. Essa figura de nada tinha de esmolambado, nada tinha de horrível. A imundice nele passava longe! Na verdade, era o homem mais bem vestido que Angelucci jamais vira! Nem na corte do rei vira semelhante nobre. Vestia-se de branco, dos pés a cabeça. Tinha excelentes modos, cometido nos movimentos, gentil nas palavras, e bela aparência. Ele abordou com uma paciência sobre-humana o empolgado Orfeo, antes que o mesmo caísse de exaustão diante dele.
- Homem, porque me procuras com tanta veemência? – como se ele já não soubesse...
Então Orfeo caiu em si:
- És por acaso quem dou a me pensar?... viestes de fato?...
- Hora homem! E porque eu não haveria de vir? – falou, confirmando, ainda que indiretamente, a sua suposta identidade.
- És o diabo?!
- Não, não! Ele não viria pessoalmente...
- Então, quem és?
- Sou Zack. Sempre venho por ele, quando é preciso.
- Então é verdade ... não foi um engodo da bruxa.
- Achou que seria?
- Sim! Ela costuma pregar peças por aí.
- Pois, eis me aqui.
Ouve então um daqueles silêncios constrangedores entre os dois personagens. Um olhando para o outro, desconcertados, mais por parte de Angelucci, é claro. Já que Zack era bastante sofisticado. Lá estavam eles, dois seres de pé, meio que um analisando o outro, querendo chegar às suas próprias conclusões. Angelucci, mais envergado que de pé, trajando uma espécie de trapo que ao mesmo tempo que parecia uma calça lhe vestia à maneira de uma camisa. Os seus dentes - os que sobraram devido ao escorbuto que teve aos dez anos - saltados pra fora e espalhados demais um do outro. Pregados ali, naquele sorriso estranho e sem graça, mas sincero. E Zack, ereto, elegante, olhando fixamente para Orfeo, sem saber se ria ou chorava, embora não possamos afirmar com toda a certeza se um demônio pode fazer qualquer uma dessas duas coisas essencialmente humanas.
Angelucci pegou-se pensando, que era estranho que aquele homem fosso diferente de tudo que ele esperava encontrar. O mal para ele deveria ser horrível, tão ou mais do que a bruxa que ele deixou na choupana lá atrás, entre os olmos da floresta antiga. Mas diante dele estava o homem mais belo e elegante que corte alguma na terra ainda havia visto.
Finalmente Zack falou:
- Pois então, o que tens a pedir?
Disse secamente o visitante.
- Eu...
Mal abriu a boca Orfeo, e Zack já soltou outra:
- O que tens a me oferecer?...
Disse de novo, com a mesma secura.
- Ham.... – gaguejou Orfeo.
Zack esperou a resposta com paciência, enquanto Orfeo parecia engasgar-se com a própria saliva.
- A minha alma. – falou finalmente, Orfeo.
O homem travestido de branco, deu um assobio fino e longo, e eis que do nada lhe apareceu uma estranha cavalgadura, que aos olhos de Orfeo não tinha saído de lugar algum, e que não parecia com nenhum animal de montaria que ele reconhecesse. Embora conhecesse muitas cavalgaduras por aquela região, sobretudo alguns senhores feudais, comerciantes e fazendeiros...
Zack, então, retirou de dentro de um pequeno alforje agarrado à sela, um pequeno pergaminho enrolado e amarrado em ramo de azevinho.
- Aqui está, leia-o. – disse Zack a Orfeo.
Orfeo não sabia diferenciar a letra "A" de um saco cheio de sabugos de milho, assim como noventa e nove por cento dos seus contemporâneos, incluindo aí, nobres e rei. Mas antes de poder dizer isso a Zack, pegou-se espantado ao conseguir ler palavra por palavra, cada uma das letras. Estava escrito em letras floriadas que ele entregaria a sua alma, ainda que esta não valesse grande coisa, a troco de se tornar-se exímio luthier e musicista. Que não espernearia ao ter a mesma reclamada, e que seguiria de bom grado para aonde quer que fosse levado no final. Que cumprisse algumas pequena tarefas que lhe fossem solicitadas pelo diabo, ainda no tempo em que se encontrasse na Terra, e que não se preocupasse, porque essas não passariam da sua capacidade física e intelectual.
-Para onde eu vou, senhor... quero dizer... quando tudo terminar?
-Provavelmente irá ser o nosso artesão de instrumentos musicais – respondeu Zack.
E acreditando-o, Orfeo assinou.
-Pois bem, está feito – disse-lhe Zack. – Agora pertence à nossa casta. Seja bem vindo!
-É só isso?
-Sim. Já pode começar a fazer os seus instrumentos. Será reverenciado por todos os cantos do mundo. E lembrado também, mesmo após partir comigo.
-Por que não fostes tão fácil assim antes? Por que fora preciso que eu entregasse a minha alma para que tivesses este poder?
-O talento é cultivado, Orfeo. E com o tempo cresce, dentro de sua dedicação e amor. Isso é justo, porque estaria ao alcance de todos, e você precisava merecer e amar para se dedicar e ser bom em alguma coisa. Entregar um pouco de si... e não receber. Isso é algo difícil de se fazer. Mas, para se ter poder não tem que ter nenhum talento, ou dedicação, ou amor. Ele pode cair sobre sua cabeça num dia qualquer, ou ser dado a você por alguém, dentro de um certo interesse. Você procurou o meio fácil, o mais natural que pode entrever. Então, estou aqui.
As nuvens se escureceram, uma grande tempestade se avizinhava.
-Acho que vai chover – disse Zack, olhando para cima, despretensiosamente . – Vou me retirar, mas volto, espere por mim a qualquer momento, pois a qualquer momento posso precisar de ti.
A chuva caiu torrencial, como se o céu chorasse a perda de alguma coisa, e as águas barrentas que desciam da encosta do cemitério traziam pedaços de caixões e corpos mal enterrados até os pés de Orfeo. Ele achou melhor sair dali, a coisa já tinha ficado macabra demais, principalmente depois que ouvira risos estridentes da velha bruxa vindos da floresta...
Naquela noite, ruídos estranhos foram ouvidos no quarto de Orfeo, e não era por obra da chuva - e nem dos ratos - que já tinham morrido de fome. Alguma coisa parecia rastejar ao lado de sua cama, e vez ou outra, dava um gemidinho. Um arrastar demorado e preguiçoso, como se alguém tentasse se aproximar da cama e não tivesse pernas, apenas os braços para se locomover.
Orfeo fez-se de desentendido, não iria descobrir a cabeça por tão pouco! Coisas piores já aconteceram dentro daquele quarto, e isso não houvera sido motivo para que ele colocasse os olhos para fora de seu cobertor de pele de burro, nem quando os ratos roeram o seu cabelo ele baixou a guarda. Não seria agora.
Uma coisa suspirou abafada embaixo dele no chão. Ele engoliu seco, como se descesse uma espada cega goela abaixo. Ainda assim, manteve-se imóvel.
Mais um suspiro... e um bater de unhas... como se a coisa lá embaixo procurasse algo, ou alguém. Orfeo já suava como uma cachoeira, e o seu coração doía a cada batida, ademais o som da chuva lá fora, aliada à escuridão de sua velha choupana, oprimiam ainda mais o seu espírito. Só pode ser obra de Zack - pensou - o diabo agora estava dando para brincar com ele. Mas Zack lhe parecia tão sério... não viria fazer traquinagens no pé de sua cama nas altas horas da madrugada. Ou viria?
Mal concluiu o seu pensamento, e alguma coisa pareceu pegar o candeeiro ao lado da cama, e pareceu querer acende-lo. Parecia que riscava no chão a pedra de fogo, tentando obter alguma faísca, enquanto Orfeo, sem acreditar, começava a repensar a sua decisão de continuar deitado, e mediar as possibilidades de sair estratégicamente pela janela. Porém, janela pesada, de carvalho, difícil de se atravessar...
Uma.... duas... três tentativas de riscar a pedra... até que a coisa pareceu conseguir fogo. Nessa hora, mesmo debaixo do cobertor, Orfeo percebeu o quarto se iluminar. Uma luz amarela e trêmula que expulsava as trevas. Orfeo notou então, um cheiro nauseabundo que partia do chão ao lado da sua cama, diretamente para o seu nariz, justamente no local onde ouvia os ruídos e o candeeiro ardia.
Algo arrastava-se mais rápido. Com menos dificuldades agora. E sempre em direção à cama e a Orfeo.
- Orfeooo.... - um som fraco, como se saído de uma caverna bem longe, e não uma boca, cochichou o seu nome...
- Orfeooooooo... - De novo. E agora algo puxava a coberta devagar.
- Sai diabo! - reclamou Orfeo.
- Eu não sou o diabo..... - respondeu-lhe a voz. Agora mais audível, e com um tom feminino.
- Desapareças, quem quer que sejas tu! Não venhas me assombrar criatura dos infernos!
-E tu, seu miserável egoísta, acha que é de onde agora? Preciso de seu auxílio. Levanta-te esta bunda que já fora gorda desse arremedo de cama e tome tento que Zack me mandou procurá-lo.
- Quem és tu? - perguntou Orfeo.
- Levanta-te e olha-te tu mesmo. Não posso dizer-te por mim mesma. É preciso que olhe-me. Mas advirto-te. Rezas primeiro! - e disse isso numa forma gemida que fizeram os olhos de Orfeo verterem lágrimas.
- Não olho!
- Olhe! Vou aproximar o candeeiro.
E dizendo assim, puxava o velho cobertor de burro.
- E se eu não olhar?
- Vou ficar ao seu lado até amanhecer. Uma hora terás que me ver.
Diante de um argumento tão contundente, Orfeo achou melhor olhar, apesar de todos os pesares. Claro que não olhou de uma vez, mas devagarinho, como se a sua cabeça lhe pesasse dez toneladas por sobre o pescoço.
Ao seu lado, no chão, a visão mais hedionda imaginável. O tronco semi-putrefato do que a primeira vista lembrava ter sido uma mulher. Da última vértebra para baixo faltava-lhe o quadril e as pernas, como se lhe houvessem arrancado a força. Um retalho branco, que outrora fora um belo vestido, era a única coisa que a vestia. Os restos de cabelo, ainda loiros, desciam engordurados pelo pescoço e ombros. Parecia que ela lhe tentava sorrir, como que para lhe parecer menos desagradável, mas isso não impediu Orfeo de se urinar por inteiro diante de semelhante episódio, e só não fez coisa pior porque já fazia dias que não comia.
A criatura, besta, ou fantasma, ou seja lá o nome que se queira dar a tão desgraçada pessoa, trazia pregada aos panos e ao corpo, a negra e molhada terra de sua sepultura, e ao se arrastar de lá até a cama de Orfeo, deixou os seus rastros de lama pelo chão da velha choça.
-Me ajude!!!!! -gritou ela tão alto, e apertando as canelas secas de Angelucci, que o tão desafortunado personagem precisou se segurar na cabeceira para não desfalecer ali mesmo de horror.
....... ............... ...... Uma calmaria demorada se abateu na cabana. Nem um pio. Apenas Orfeo e a presença, um olhando o outro.......
A figura esquelética então tentou falar de novo. Mas Orfeo, branco como a neve do inverno, finalmente disse:
-O que quer de mim? -ele demorou 40 segundos para dizer essas palavras.
-Arrancaram-me o meu filho, juntamente com a minha vida, Vês? - disse a aparição, mostrando-lhe o que lhe sobrara do corpo.
-Sim.... eu vejo, criatura!
-Eu ainda vivia, quando me arrancaram o ventre e as entranhas, para servir a uma infame magia negra.
Nessa hora, de repente, um corvo bateu no batente da janela, na intenção de entrar, mas ficou agarrado na pequena abertura, e grasnava feito o capeta. Orfeo se mijou todo de novo!
- O que eu tenho com isso?! -perguntou Orfeo.
-Não o culpo por não me conhecer. A minha aparência se deteriora a cada minuto, e não sou a bela donzela que costumava ser.
-Definitivamente não é.
-Fui sua vizinha por muito tempo... A jovem Carmine... de doces cabelos anelados e porte formoso que por tantas vezes olhou pela fresta de sua porta...
- Quem, eu?!
- Muito antes de eu ser o que sou agora - disse tocando Orfeo com as suas mão frias e pegajosas. - E Zack me mandou aqui, ele disse-me que me ajudaria.
-Como eu poderia ajudá-la?
-Eles levaram o meu filho para as catacumbas embaixo do castelo. Eu não poderia chegar até lá... Há parasitas de almas naqueles corredores tortuosos, embaixo do cemitério... Mas, Zack disse-me que você poderia, Orfeo.
-Eu poderia? Não vejo porque ele pensou isso.
-Ele mencionou a sua habilidade musical,e disse-me que se construísse uma cítara, e a tocasse, poderia entorpecer os espíritos malignos que se arrastam pelo labirinto das sepulturas.
-E você, Carmine, é o quê? Um anjo?
-Se me julgas pela minha aparência, por causa da minha alma dilacerada, então saibas que igualmente serás julgado, quando chegar tua a hora. Mas saibas também, que se não me ajudares, assombrarei a sua existência de uma forma tão pavorosa, e te perseguirei até os lugares mais improváveis, que em breve enlouquecerás só de ouvir o assovio do vento. Eu te juro, Orfeo! - Disse com os punhos cerrados balançando-os contra o ar.
-Não farias isso, não serias capaz...
-Pois saibas que pelo meu filho eu faria ainda muito mais. Orfeo, eu sei ser medonha, repulsiva e horrorosa, mais do que possas imaginar. Entenda isso!
-Tem se olhado no espelho ultimamente, Carmine? Mais horrenda do que estás é difícil pra mim conceber. Mas farei o que me pedes, acho que eu não tenho escolhas, estava no contrato assinado por mim...
-Então vá, maldito, e livre a mim e a meu filho dessa maldição! - implorou a fantasma.
A alma então, com as mãos prostradas, desvaneceu-se lentamente diante de Orfeo.
Angelucci dirigiu-se até a sua oficina, e com as suas ferramentas, dera, habilidosamente, vida a uma cítara, de som tão claro e límpido, que derreteria o mais duro dos corações.
Com o instrumento em mãos, partiu para o principal cemitério da vila. Uma antiga e gótica necrópole entre as colinas. Repleto de mausoléus, torres, e lápides negras, num vale de onde se via a escura silhueta de um castelo sobre a montanha.
Os corvos e gralhas o escoltavam fielmente, na esperança de ele ser o seu próximo alimento. A aparição na cabana deixou nele um cheiro de corpo podre e morte, que ele não conseguira tirar nem mesmo com três banhos - sendo que a sua cota mensal eram de dois. Isso no verão.
Adiante, não muito longe, uma luz piscou perto da porta de um velho e pequeno mausoléu. Observando melhor, Orfeo notara a figura de Carmine, indicando para ele onde entrar e ter acesso aos corredores das catacumbas.
A terra do cemitério estava molhada, a chuva que caía transformava o dia em noite, e a paisagem insólita do vale onde descansava o cemitério congelava a alma de Orfeo, a ponto de esfriar o próprio inferno.
Orfeo tinha de entrar, ele não tinha escolhas.
Ao aproximar-se, uma escura e sombria estátua, que lamentava por sobre um túmulo de mármore, abriu os olhos e apontou-lhe um pequeno jazigo em forma de capela, que abrindo-lhe as portas preguiçosamente, parecia convidá-lo a entrar.
Desde que assinara o famigerado contrato, não só as suas habilidades de luthier tinham melhorado intensamente, como também, habilidades por assim dizer, não tão desejadas, como por exemplo, perceber todo o mundo sobrenatural ao redor de si.
O pequeno túmulo em forma de capela, branco por fora e escuro por dentro, guardava um segredo que apenas três caixões que descansavam sobre uma mesa fria podiam contar: um túnel encravado entre duas criptas mais juntas à parede! Um túnel estreito, frio e possivelmente úmido, que descia diagonalmente para os subterrâneos do cemitério. Talvez, usado outrora por ladrões de túmulos, talvez, cavado pelo próprio diabo em pessoa. Vai lá Orfeo saber, tudo o que ele sabia, era que tinha de entrar, ou Carmine o assombraria pelo resto de sua vida, não importando quão longa ou breve esta fosse.
O vento hostil soprava a velha lamparina ainda acesa e o resto seco de flores que adornavam o jazigo, postas ali por alguma alma viva e, por certo, saudosa, que ainda visitava o cemitério em memória dos mortos. Ainda na entrada do sórdido túnel, pedaços de ossos e restos de panos saltavam da terra para fora, vindo com certeza de túmulos e sepulturas do chão da velha cidade dos mortos. Orfeo Angelucci respirou fundo, protegeu a cabeça, e literalmente mergulhou na fenda esburacada, que em direção às velhas catacumbas ia.
Um emaranhado de túneis partiam de vários pontos, feito um labirinto. Sepulturas encravadas nas paredes revelavam uma necrópole ainda mais antiga, cujos restos mortais estavam mumificados ou se encontravam apenas em ossos roídos pelos ratos que ali viviam. Uma espécie de luz doentia, sem fonte certa, tornava a visão menos obstruída, por assim dizer, e Orfeo podia ver os seus pés, e um pouco além da extensão dos seus braços.
Os ratos tentavam lhe escalar pelas pernas, jamais haviam visto um corpo vivo antes. Orfeo tinha de agir rápido para não ser devorado vivo, os ratos já não aguentavam mais roer múmias com gosto de sabão. E eram ratos tão grandes, que o menor deles poderia facilmente pegar um gato preto pelo rabo e chutar-lhe o traseiro sem a menor consideração. Cada mordida de rato era um bicudo que Orfeo desferia nas nojentas criaturas. Já estava ficando craque nisso. Mal o rato se lhe aparecia com os olhos acesos em brasa, que um chute comia rápido e certeiro. Tinha para todos os gostos e tamanho: de trivela, dois dedos, peito de pé, com efeito... tinha rato que ele até matava no peito antes de chutar.
Seguiu nessa peleja ainda por uns 300 metros, e três ou quatro túneis depois, os ratos debandaram. Mas não que as coisas tivessem melhorado para Orfeo, antes pelo contrário, pois nos túneis logo a frente havia uma ofensiva de inenarrável quantidade de baratas voadoras e cascudas, que mal se deram conta da presença do desditoso personagem, e já abriram as suas asinhas para avançarem com toda a fúria em direção a ele.
Falta-me engenho e arte para narrar o que aconteceu naquelas galerias escuras e fedorentas embaixo do cemitério, cuja pândega ruidosa se estendeu de uma esquina a outra. Como não venderia minha alma ao diabo para ter semelhante habilidade narratória, que fique por aqui tudo a cargo da imaginação individual de cada um. Mas que saibam que as baratas atacavam por todas as frentes. Entrando pelas mangas da camisa de Orfeo, pelas pernas de sua calça, embaraçando-se em seus cabelos, correndo-lhe pelo pescoço, tentando, e com algum sucesso, intrometer-se em determinados orifícios, como no nariz, orelhas e boca, despertando em Orfeo uma agonia e um terror tão grandes, que Carmine seria uma miss diante dele, e o diabo em pessoa, com todas as suas técnicas, jamais poderia suplantar.
Foi quando lembrou-se que possuía o dom dado a ele em troca de sua alma, de tocar com o seu instrumento uma música tão deslumbrante, que poderia dominar uma fera. Talvez funcionasse com as baratas.
E assim, beliscou as cordas de seu instrumento, e notas majestosas ecoaram pelos corredores abandonados, fazendo debandar aquele enxame de insetos cascudos, em fila indiana e ainda com a disciplina de uma tropa!
É, o diabo havia cumprido a sua promessa. Orfeo era portador de uma refinada sensibilidade musical. Agora, Orfeo tinha que cumprir a sua. O caminho estava livre para seguir e completar a tarefa dada a ele por Zack e Carmine.
Adiante, uma galeria medonha abria-se, e bem a frente, uma escadaria gótica subia em espiral para a superfície. Possivelmente para o velho castelo. Mas o caminha até lá ainda seria longo e cansativo. Acima de sua cabeça, no teto das catacumbas entre as estalactites, almas errantes que dormiam nos corpos enterrados notaram a sua presença, e notaram mais ainda, que ele podia também notar a presença delas! Arrastando-se no teto, brotando como gotas d'água na terra encharcada, uma legião de espíritos vieram para assombrá-lo...
Almas, visivelmente atormentadas, desciam do teto da caverna como folhas secas soltas ao vento. Homens e mulheres, e até mesmo crianças que outrora viveram naquela pequena vila e morreram, vieram com o mal que os tragou impressos nas faces e no corpo, como uma identidade pessoal e única de suas mortes. Desse modo, despertaram de seu sono para ter com Angelucci.
O ódio que nutriam por estarem mortos e ele vivo, traduziu-se num eco ensurdecedor de lamentos e gritos que curariam um louco, ao invés de enlouquecer um são. Eram aparições disformes e esbranquiçadas, que pouco lembravam os seres humanos que foram, a não ser pela total fúria e inveja que nutriam pelo assustado protagonista da ação. Mãos invisíveis o agarravam pela canela e apertavam o seu pescoço, enquanto faces distorcidas apareciam diante dele e flutuavam pelo ambiente, e cheiros intraduzíveis lhe cercavam por todos os lados. Eles queriam importuná-lo, enlouquecê-lo, para que ficasse ali com eles, padecendo.
Orfeo tocou a sua cítara, mas o lindo som que ecoou pelo sombrio túmulo pareceu não fazer efeito sobre as almas endurecidas que jaziam ali há muitas décadas, ou mesmo, séculos. Os seus dedos beliscavam com pressa e maestria as delicadas cordas do instrumento, e a doce música saltitava pelos meandros indecifráveis daquele estranho labirinto, levando com ela as esperanças de Orfeo.
E então, quando tudo parecia perdido, e as almas se multiplicavam em centenas, uma luz diferente inundou aquele local escuro, e o próprio Campos Elísios pareceu ir pousar ali! As paredes ásperas e causticantes aqueles túneis, transmutaram-se numa caverna paradisíaca e verdejante, cujos sons de água corrente e límpida poderiam ser ouvidas ao longe. E um coro emocionante de vozes angelicais desceu tão refrescante e plácida, que ofuscou a maravilhosa música da cítara de Orfeo.
Nesse momento as almas atormentadas fugiram assustadas para as suas covas, deixando Orfeo em paz novamente. Agora, tudo ao redor cheirava alecrim, erva do campo, e hortelã. Na luz morna e clara que descia, uma silhueta apresentou-se a Orfeo....
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