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ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE

 
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Não fui tão monstro como supôs a memória
ebriada de rancor.
Não morri das espadas como minha consciência
insistia em construir meu caixão de remorsos.
Mas jamais fui herói.
Fui sempre pintado com a cor das tintas transparentes
e sendo assim,
ninguém jamais pensou no caos vivo que corria dentro de mim.
Nem no pânico e terror das minhas emoções de bambu
que rangiam ao vento.

Deslizei, não sei como, por caminhos pouco comuns
tais como encanamentos de pias, bueiros, porões & tetos.
Tiro a camisa e torço o sangue das trilhas sem glória.
Não repetirei quantas vezes morri de fome e de sede.
Quantas vezes minhas mãos nada tinham a afagar.
Não falarei da neblina de tédio que cobria a minha cidade.

Lembrarei apenas do menino que nasceu puro amando
o colorido das manhãs azuis...
Do menino que não disse palavra e viveu
o eterno verão de um pônei selvagem.

Vim a nascer depois um cacto calado e paciente na espera do amor.
Crescia em mim a natureza da solidão
dando liberdade para que ocupassem o meu corpo
todo o mato, galhos & cipós.
Eles não faziam mal algum, nem incomodavam o coração
que já estava igual a uma velha casa fechada e abandonada
no meio das jabuticabeiras.

Moisés seguia pelo deserto guiado por uma nuvem
e nós, na condição de mendigos
apenas abríamos as bocas de misericórdia
quando chovia o milagre.
Eu amava a moça que perseguia os mistérios da Lua.
As estrelas se alegravam em nós
no alto dos montes.
Os ufos nos cumprimentavam à distância.

Mas ainda sinto pelas noites perdidas no mofo
em que meu corpo era como um armário velho e envergado
e meu cérebro funcionava como uma maquininha burocrática.
Bichinho social?! Me esqueci das essências:
- Que navegar no mar do peito, é muito mais necessário.
- Que navegar nos teus olhos é muito mais necessário.
- Que amar é muito mais que necessário!...

Ainda me inspiro às margens do Verde.
Ainda construo polígonos de estrelas às margens do Verde
e vejo a canoa deslizar.
Ainda faço guerra às margens do Verde.
Minha aldeia é tolhida e mesquinha como eu mesmo.
Mas a minha certeza no céu é bem maior.
E além do mais,
sempre terei que me ajoelhar diante do Princípio.


Luiz Felipe Rezende


 
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Luizfeliperezende
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 10/07/2018 09:40  Atualizado: 10/07/2018 09:40
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 2123
 Re: ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE
O tom de odisseia é palpável. Embora epopeia sorreria-me melhor.
De verde andamos. Fugindo aos tons outono. Aos tons abandono que ficam pintalgados pelos teus versos.
A ideia de vida cheia é notória. Mas o verde que termina o poema na última estrofe assim o começa.
Ver de construir os ideais, amiúde fazendo restauros. Ver de ver o importante e que irremediavelmente nos salva: o amar.

Começas com uma força terrível, pondo a nú todas as falhas que te levaram a um bruto "...mas jamais fui um herói...", mas rancoroso talvez, com remorsos para dar e vender.
Gosto muito do verso "...fui sempre pintado com as cores das tintas transparentes..." ao nível da metáfora está bem conseguida (claro que me identifico, facilitando o gosto) mas os versos seguintes colocam a transparência sob uma forma que me escapava. Disso de ser discreto à transparência, levar a que o "caos" interior fosse um enigma para os pares serve bem um poema de sobrevivente.

A linguagem cuidada, as figuras de estilo que aplicas, a riqueza nas imagens e por fim o verde supracitado; deixando uma marca de esperança (essa é a última a morrer) faz deste poema uma obra de arte. Sem medos.

Abraço

Enviado por Tópico
Luizfeliperezende
Publicado: 10/07/2018 21:14  Atualizado: 10/07/2018 21:14
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 Re: ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE
Caro Rogério;
Fico honrado por seus belos
e profundos comentários
sobre o poema.
Um forte abraço.
Luiz Felipe

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/07/2018 00:44  Atualizado: 20/07/2018 00:44
 Re: ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE
Apreciei este seu sentir poético
com seu estilo impresso!
Uma ótima noite!

Abraço.


Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 07/09/2018 15:40  Atualizado: 07/09/2018 15:40
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Mensagens: 10200
 Re: ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE
Boa tarde Luizfeliperezende, teus versos enredam um personagem que reverencia a todos os elementos pretéritos que tiverem importância em seu viver, e dão um colorido especial ao seu cotidiano atual, parabéns pelo vosso eloquente poema, e impecável ilustração, um abraço, MJ.