O ESQUELETO DE PINGUIM
- "Hoje eu vi um esqueleto de pinguim." - disse-lhe a menina, do nada. Ele coçou a cabeça e olhou para a distância como se tentasse visualizar a incomum imagem da ave que não voa sem a roupagem negra que a caracteriza. Não conseguiu. Sem saber bem o que dizer, saiu-se com um vago: - "Que bom, filhinha." - e escondeu sua total ignorância sobre pinguins esqueléticos no jornal que lia. A menina, frustrada, com a reacção do pai, voltou para o parquinho e foi brincar no escorrega.
Ele, contudo, não conseguia mais se fixar na leitura das notícias. A ideia do esqueleto de pinguim lhe parecia quase surreal. Não que imaginasse tais aves invertebradas ou que se dissolvessem imediatamente nas nevascas após a morte, mas era incapaz de dar imagem àquele pensamento. Isso o frustrava profundamente enquanto olhava para sua filha brincando, já esquecido de todo do jornal. Sim, n'aquela tarde tranquila, enquanto a filha brincava, quedou enfeitiçado pelo demônio da monomania…
Nada a fazer, nada fez. Não havia ali livros para consultar. O telefone móvel, inútil, estava sem bateria. Ele era, aliás, um d'aqueles raros seres do milênio passado que odiava atender ligações na rua e que frequentemente se esquecia de pôr para carregar o celular antes de sair. Considerava uma impertinência sem tamanho as pessoas pensarem que todos estão o tempo todo disponíveis para todos. Ele, não! Ele queria estar ali, n'aquele instante, relacionando-se com o presente imediato ao invés de se perder em nuvens de informações com fotos ruins ou vídeos ainda piores. Saíra de casa para levar a filha ao parquinho e levara o jornal mais para se proteger do sol do que para se informar. E eis que, provocado pela imagem absurda, deseja subitamente ter um celular à mão para fazer uma busca. Tateou os bolsos, mas, como de hábito, o aparelho estava apagado… Maldisse, como tantas vezes já o fizera, àquela mania de se sabotar deixando telefones sem carga. Olhou para os lados e viu alguns pais e mães que, como ele, estavam esperando a brincadeira dos filhos terminar para irem para outro lugar. Como se tornou comum hoje em dia, quase todos estavam olhando para as telas azuis dos seus aparelhos, totalmente desligados do que faziam os filhos no parquinho. Pensou em pedir um celular emprestado, mas repeliu quase de imediato a ideia. Afinal, que haveria-de dizer: - "Por favor, empreste-me o celular para saber como é um esqueleto de pinguim…"- Não, não… Nada a ver!… Poderia mentir, dizendo estar n'uma emergência, mas aquilo lhe pareceu ainda pior: Era péssimo mentiroso! Quando ousava soltar uma mentirinha, por mais inofensiva que fosse, seu corpo parecia se pôr em revolta contra sua mente e a denunciava por todos os meios possíveis: Gaguejava, furtava-se a olhar o outro nos olhos, corava sem mais nem quê e ria sem que houvesse do que rir…. Era um embusteiro patético que não enganava nem uma criança de colo. Tinha-de haver outra solução!
Não, aquilo era absurdo. Não precisava saber como era o esqueleto d'um pinguim! Valha-me Deus! Por que cargas d'água a menina teve-de lhe falar d'aquilo? Mas era horrível a sensação de não saber… Por mais que se esforçasse, a ideia do pinguim sem carne não correspondia a qualquer imagem possível em sua mente. E a angústia o tomava d'uma maneira absurda de modo que repetidas vezes se imaginou abordando um dos presentes para pedir o celular e sanar sua curiosidade. Não o fez, porém, contendo-se heroicamente do ridículo de ser denunciado em sua curiosidade malsã tão logo devolvesse o aparelho e o outro lhe visse a busca absurda no histórico. Não. Absolutamente, não! Não se exporia a um vexame d'esses com desconhecidos.
Tinha-de haver outra forma… Ir para casa, então! Mas havia prometido aquele passeio à menina durante a semana toda!… Não podia simplesmente arrancá-la d'ali e ir para casa: Ela não entenderia. E com razão! Foi com muita insistência que a menina o fizera vir ao parquinho. Semanas de insistência! Pensou n'algum artifício, mas nada lhe vinha além das mentiras mais toscas e das desculpas mais vazias. Não havia meio: Tinha-de esperar a filha querer ir para casa. Ela era demasiado esperta para cair n'uma esparrela qualquer. Ademais, haviam acabado de chegar.
Ele se sentou no banco do parquinho e pôs o jornal de lado. Por mais que se esforçasse, via apenas o pinguim, negro e simpático, bem encarnado e penado. Confundia-se: Pinguim tem bico ou não? Dá para ver seus olhos? Evocando lembranças de documentários assistidos em tardes de tédio mal conseguia fixar alguma imagem para além dos desenhos caricatos que as animações consagraram. Os pinguins em sua mente não se pareciam sequer com a ideia de pinguim que guardava… Vivendo nos trópicos e longe dos grandes centros, obviamente jamais vira um pinguim de perto. Não sabia quase nada sobre o bicho e admiti-lo era doloroso n'aquele momento. Como podia ser? Como o esqueleto do pinguim?!
Exausto após quase uma hora de devaneio, chamou a filha e lhe perguntou: - "Querida, onde mesmo viste o tal esqueleto de pinguim? Foi no caminho para cá? Vamos voltar lá para o papai ver também! Exclamou vitorioso com a solução enfim encontrada.
- "Que pinguim? Não, não era um pinguim… - respondeu ela sem entender - Era o esqueleto d'uma avestruz!"
E, de novo, ele olhou para o vazio, preso àquel'outra imagem ainda mais inimaginável…
Betim - 22 06 2018
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.