Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio corre; e pois que com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.
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Por isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros;
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.
*João Cabral de Melo Neto (9/1/1920, Recife - 9/10/1999, Rio de Janeiro) foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, marcada pelo rigor estético, com poemas avessos a confessionalismos e marcado pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil.
Pintura: Rio São Francisco, Impressões Brasileiras - Livro Velho Chico, coletânea por Elson Fernandes.