Ninguém pretendia ficar “zapeando” diante da TV no quarto do hotel. O grupo que estava ali era formado por cientistas e pesquisadores de várias partes do mundo que participavam de um congresso científico.
E se formou a roda em torno de uma mesa: conversas soltas, discutindo-se assuntos diversos e até se buscando uma certa descontração.
Meu compadre Brandão conversava com alguns físicos. E fez uma pequena provocação:
-Vocês físicos estudam o Maya que para o oriental é a ilusão. Todo este mundo fenomênico é Maya.
- Ou seja, vocês estudam a ilusão.
- Como pode um cara estudar a explosão de uma estrela que aconteceu há dois milhões de ano-luz?
- O outro, um indiano, estuda poeira cósmica!
- Isto é trabalho? Trabalho pra mim tem que ser algo mais prático. Assim como o médico que opera o
paciente, o motorista que dirige o ônibus e o contador que contabiliza os patrimônios de uma empresa. Bens palpáveis: ações, apólices, contas, apartamentos, carros...
E Brandão continuou a argumentar:
- O que muda em minha vida, se uma estrela explodiu há dois milhões de anos-luz?
Um dos físicos respondeu calmamente:
- A ciência pura não tem que responder imediatamente a fins utilitários. Mas o que se estuda, pode um dia gerar alguma descoberta importante para a humanidade.
Mas aquele grupo não queria discutir propriamente ciência naquele momento. E o grupo começou a ressaltar a cultura de cada um dos representantes ali presente. Começou com o italiano. E temos uma afeição especial pelos italianos, tão presentes na formação do Brasil pela miscigenação, cultura e culinária. Digo que sou descendente dos Thiengo para o italiano que parece um pouco com o Omar Sharif quando contracenava com a Sophia Loren. Aliás, Omar Sharif nasceu no Egito. Conhece algum Thiengo na Itália?
- Ah!! Muitos – ele responde.
- Um bando de picaretas?
- Non, non, tutti buena gente!
Italianos, imperialistas na era dos Césares, mas deixaram muita coisa boa para o mundo: Da Vinci, Galileu, Fellini, macarroni, cinema Paradiso de Giuseppe Tornatore. Ora, aí está a alma latina. Humana e emocionada. Isto está fazendo falta pro mundo.
E também nos lembramos de Roberto Bagio.
- Viva Roberto Bagio pelo pênalti perdido na Copa de 94 e o Brasil foi tetra!
- Agora vamos falar sobre a Grécia! E olhamos para o cientista grego que queria conhecer a constelação do Cruzeiro do Sul. Fizemos um esforço pra mostrar-lhe a constelação. É uma coisa importante e ele queria aproveitar a oportunidade de estar no hemisfério sul. As luzes remotas da cidade atrapalhavam um pouco a visão.
Será pouco falarmos em Platão, Sócrates, Cícero, Demócrito como as contribuições da Grécia para o mundo?
- Viva os filósofos gregos!
Na outra extremidade da mesa, estava um norte americano com um boné na cabeça. Escutava calado, sorria e acompanhava as conversas. Perguntamos se ele estava conseguindo acompanhar a nossa conversa num inglês latinizado.
- Yeah! Yeah!
Assentada sobre a mesa estava a mulher russa que se chama Marina, como na música do Dorival Caymmi. Era uma mulher loira e alta, assim como penso que deve ser uma russa. E falava, e argumentava como quem tem vodca correndo no sangue.
- Vamos falar da Rússia. Quem leu Dostoiévsky? – perguntei.
Ninguém se habilita a responder que leu Dostoiévsky, com a exceção de Marina. Ela leu por obrigação, no colégio, assim como éramos obrigados a ler José de Alencar e Machado de Assis, no Brasil.
E alguém se lembrou de falar em Yúri, o primeiro homem a ver que a nossa casa é azul e redonda. Marina diz que ele falou outra coisa que foi marcante, além de dizer que a Terra é azul:
- Paiérrali!
- Paiérrali? O que significa isto?
- Há de seguir, a pé, a cavalo, de moto ou de caminhão. Não importa como. Há de seguir, sempre.
Tiro a carteira do bolso e anoto num pequeno pedaço de papel a palavra e o significado.
Não sei onde a conversa mudou de rumo e caiu no desvão da religião, aquilo que está presente em
cada povo de uma forma particular, íntima e inexplicável.
Marina foi firme na afirmação: - Coca cola também é religião!
- I don’t agree! – rebateu o norte americano.
- Coca cola também é religião!
Meu amigo Brandão falou que aquilo era o reinício da guerra fria. Era de madrugada. As plantas respiravam o orvalho da serra e os galos já anunciavam o dia. Após uma foto com todo o grupo, um rapaz mexicano de cavanhaque e sem bigode, falou que “fotografias aprisionan el alma, como hablan el indígenas”..
Estávamos todos com as almas aprisionadas. Mas devíamos seguir:
- Paiérrali!
- Paiérrali! - Todos responderam alegremente.
Luiz Felipe Rezende