Uma pessoa me diz que São José dos Campos tem o maior índice per capta de cães no país. Ou seja, a cidade tem a maior taxa de cachorros por dono entre as demais cidades brasileiras. Diz que a sua afirmação é baseada em estatística séria.
-Sabe por que isto, meu caro?
-Segurança – presumo – os cães são vigias eficientes, não faltam ao trabalho, não reivindicam décimo terceiro, nem depósito no FGTS. Eles são mão de obra barata, ou melhor, pata de obra barata, é isto?
- Não, não é isto, meu amigo. O motivo é o fantasma da solidão! Os paulistas têm dificuldades de relacionamento. Em meu estado (Espírito Santo), as pessoas convivem com mais alegria e confiança entre si. Por isto, não têm neuroses, não frequentam consultórios psiquiátricos e nem transferem as suas carências para os animais.
E acrescenta aos seus argumentos:
- Os paulistas pensam demais em suas profissões. Esquecem do lazer e da vida pessoal.
Não tenho certeza sobre a opinião do amigo capixaba, mas uma coisa é certa e contribui para a sua tese: a quantidade de cachorros que existe em meu bairro. E apesar da amizade e simpatia que nutro por nossos irmãozinhos animais, não deixo de achá-los muito intolerantes!
E os inimigos deles são sempre os mesmos tradicionais inimigos: o gato, os serviços públicos (o carteiro, o caminhão de lixo) e algum semelhante que desfile pela rua, acompanhado do dono ou da dona que saem para passear no final da tarde.
A intolerância deles afeta a qualidade sonora do bairro. Quando o caminhão de lixo surge na rua entoando uma vinheta ecológica sobre o lixo reciclado, os cães disparam como uma orquestra sem ensaio, expressando o protesto deles e a hostilidade para com a utilidade pública. Eles nem levam em conta a importância da campanha ecológica promovida pela prefeitura.
Os solos caninos são diversificados. Um deles parece possuir um botão automático que quando é acionado, o latido sai contínuo, igual, incisivo e torturante. Outro cão uiva um blues lúgubre e agourento que até dá arrepios na alma.
Em meio a este caos sonoro, na pausa dos cachorros, ouço um assobio distinto e peculiar. O assobio entoa uma melodia que não é alegre nem triste como o poema da Cecília. Não é qualquer sucesso que a mídia nos bombardeia. É genuinamente original. É esperançoso como se alguém quisesse dizer que não perdeu a guerra, apesar de tudo que possa estar acontecendo.
O assobio não tem hora pra surgir. É no início da tarde ou no meio da noite quando já me deitei pra dormir.
Fiquei curioso. Quem é este ser que me lembra a lenda do flautista de Hamelin? Quem anda pelas ruas como um poeta, assobiando uma bela melodia?
Quem é esse louco, esse desocupado?
Numa tarde de sábado, o assovio soou pela rua. Corri até à varanda e vi um homem que vinha puxando um carrinho de feira. Uma mulher o seguia a alguns passos atrás e um cachorrinho também os acompanhava.
O homem ia verificando nas lixeiras das casas e dos prédios, algum material que poderia ser reciclado como papelão e vidros. Esse material iria vender com certeza em algum ponto de coleta. Era um concorrente do caminhão da prefeitura. Catava o que valia a pena nos lixos e empilhava sobre o carrinho.
Quando passou pela minha varanda, olhou para cima e percebeu que eu o observava. Tentei disfarçar, já era tarde, havia reparado a minha indiscrição.
Mas, logo retomou o assobio altivo, orgulhoso, com aquela melodia de quem não perdeu a dignidade. E seguiu o seu caminho com a mulher e o cachorrinho. O cachorrinho aumentou a velocidade, assumiu a frente, empinou o rabo e o pôs a balançar como uma bandeira em movimento.
Luiz Felipe Rezende