O Meu Conto de Natal
Era uma vez um menino que vivia numa casa sem eletricidade, sem água canalizada sem telefone, sem rádio, sem estrada com asfalto, mas havia três candeeiros, três candeias a petróleo e mais duas de azeite. A água corria a uns escassos cinquenta passos do portão do quinteiro …bastava ir lá encher o cântaro e ter depois forças para o trazer para casa. O telefone e o rádio não faziam falta, na estação do comboio havia, na taberna do senhor Coelho, mais conhecido por “O Coelho da Estação”… Aos domingos ouvia-se o relato… e ao pé do rádio estava um objeto preto muito estranho, que uma vez tilintou como as campainhas de algumas ovelhas. Uma voz gritou do lado de dentro da porta da cozinha: - Atendam o telefone, deve ser o Alberto a confirmar que vem cá passar o Natal… Ficou o menino a saber o que era um telefone, depois de ter visto e ouvido um rádio na semana anterior. Também ficou a saber que estava a chegar o Natal… O pai costumava ler á lareira nas noites geladas, um livro muito escuro que guardava na gaveta da mesa da cozinha…Nesse livro falava-se da criação do mundo e do nascimento de um menino num curral, com uma vaquinha e um burrinho que o iam aquecendo.
O menino sentia inveja daquele outro que tinha o bafo dos animais para se aquecer, e ele apenas tinha uma lareira que o aquecia pela frente…para aquecer as costas tinha que se voltar…mas logo lhe arrefeciam os pés e as mãos e deu consigo a pensar que se tivesse uma vaquinha á frente e um burrinho atrás, não precisava da lareira fumarenta que lhe fazia arder os olhos.
O Natal era o dia de anos do menino sortudo que tinha mãe e um pai carpinteiro, mas era Filho de Deus…. Tudo muito complicado para a sua cabecinha ainda em crescimento, já com bastantes perguntas que gostaria de fazer, mas que por medo nunca fez. O tal livro era sagrado conforme o pai dizia: -“ isto é a Bíblia Sagrada”. E ficávamos até altas horas a ouvir a saga do filho pródigo que se chamava José como ele. O pai comovia-se sempre e terminava com a voz embargada…ou seria cansaço à mistura com o sono?
Este menino nascera em 1939, um ano marcado pelo início da segunda guerra mundial que se prolongou até 1945, por isso não foi “menino” tal como agora se é. Muitas coisas aconteciam bem longe, mas quando se deu conta de que era pessoa, gente… misturado com outros meninos em tudo iguais a si, estava na idade de ir para a escola que na freguesia não havia, para a catequese numa igreja sem padre residente (havia o pároco de Santo Isidoro) que vinha celebrar missa ao domingo. O Natal para ele era o lindo presépio que estava na igreja, obra de algumas catequistas…umas chapas de cortiça revestidas com musgos verdes, onde “pastavam meia dúzia de ovelhinhas, sob o olhar atento de uns pastoritos de barro que se compravam nas feiras…No curral havia o Menino Jesus, Nossa Senhora, São José uma vaquinha e um burrinho. Como não havia eletricidade havia velinhas acesas que eram vigiadas de perto para que não ardesse tudo…No fim da missa beijava-se o menino que o senhor abade encostava a todas as bocas que aparecessem, sem se preocupar em limpar o pezito que era lambuzado pelos paroquianos. Se na taberna bebiam todos pela mesma caneca de barro branco sem nojo nem receios infundados, aceitavam com a maior naturalidade o procedimento do abade e achavam tudo muito natural.
Hoje o Natal é uma oportunidade de negócio, mas naqueles tempos não havia prendas. Pelo menos esse menino nunca teve. Foi a irmã mais velha que lhe disse que à meia-noite o Menino descia pela chaminé e trazia prendinhas a quem deixasse o sapatinho na lareira…nunca acreditou que alguém se atrevesse a descer pela chaminé de noite, pois estava cheia de salpicões, chouriças e presuntos ao “fumeiro”…era ali que vinha parar o que de melhor havia no porco que todos os anos se matava e tinha que durar até ao ano seguinte. Mas a irmã insistia e garantia que na catequese ensinavam como fazer…lá lhe deu um sapato seu e ela o colocou ao lado do sapatinho dela. No dia seguinte de manhã estava um salpicão em cima dos sapatos porque um rato havia roído o fio que o segurava…tiveram que o dar à mãe e ela meteu-o numa caçoila de barro preto onde já havia mais, mergulhados em azeite para ocasiões ou visitantes especiais.
O Natal começava na noite de vinte e quatro, com uma ceia especial de batatas cozidas com bacalhau, couve tronchuda e cebola, tudo muito bem regado com azeite que vinha para a mesa no estado sólido, era servido à colher e, com o calor do prato, retomava a forma líquida original (o frio era tanto que congelava todo o azeite que estava nas talhas de barro). As sobremesas eram as rabanadas de mel, de açúcar, de leite, de vinho e até de canela e depois ainda tínham a alternativa da aletria servida numa travessa redonda, que depois de arrefecida ficava tão consistente e dura como o azeite. Era cortada em linhas horizontais e verticais e podia-se comer à mão ou com um garfo.
O menino nunca soube o que era a “Missa do Galo”. Havia a missa da manhã (06H00) e a Missa do dia (11H00), só em certos domingos.” Missa do Galo” à meia-noite, em pleno inverno perto da Serra do Marão era impensável.
No dia de Natal reunia-se a família toda e então havia a “sarrabulhada” principal em casa da avó de Castelões e outras se iriam seguir na casa dos que haviam feito a matança do porco…os tios e tias eram muitos, por isso havia sarrabulho até ao início da quaresma.
O menino cresceu e todos os dias guardava as ovelhas no pasto para que não entrassem na horta.
Aos seis anos ouviu a padeira e a sardinheira a espalhar pela aldeia o fim da guerra por causa da bomba atómica. Entrou para a Doutrina em casa da Sãozinha do Penedo, que era a melhor costureira da terra e cantava muito bem no coro da igreja. Foi matriculado na primeira classe na escola de Fontelas que funcionava numa casa grande de dois pisos, sem retretes, nem água que certa madrugada ardeu, tendo-se perdido todas as carteiras de pinho, um lagar de vinho, a adega adjacente e a fábrica dos caixões.
Os meninos ficaram sem aulas cerca de um ano, mas o pai tinha boas relações com o Regedor da Freguesia e conseguiu lugar para o menino se matricular na escola da Livração…só que para lá chegar teria que atravessar uma ribeira, a linha do comboio e um pequeno bosque de pinheiros, carvalhos e castanheiros e finalmente seguir as bordas de uma levada para encurtar caminho…Foi o fim da “meninice” e o início da fase mais decisiva da vida, onde tudo se pode ganhar ou perder para sempre. Este ganhou!
José Mota
Natal de 2017 ( 79 anos depois de ter nascido)
José Mota