Crónicas : 

a medida da morte

 


Contabilista de profissão, habituou-se desde novo a medir tudo na proporção das necessidades e do que devia, quer em dinheiro, quer nas emoções.
As emoções eram tal como o dinheiro uma moeda de troca, e embora, pelas contas dele fosse cobrador na família no que às emoções dizem respeito, vivia sozinho abandonado pela mulher e pelos filhos que não mais aturavam essa radicalização pelos números, espécie de histeria que tudo controlava em função “do que dou e do que recebo”.
Ficou a viver sozinho no apartamento para o qual tanto trabalhou, e considerou como justa paga pelos anos de colecta da percentagem bancária do seu vencimento mensal.
Ficou com as mobílias, que a família não lhe exigiu nada em troca da histeria que aturou.
De pijama no meio da sala observa os cadeirões forrados a couro que lhe custaram cerca de dois meses de ordenado. Pela porta entreaberta via a cozinha com electrodomésticos de última geração anunciados há vinte anos atrás e que lhe reclamaram a soma que já não se lembrava mas seriam qualquer coisa como 6 salários desse tempo. Coisa pouca para a ambição desse tempo de mostrar aos amigos que a amizade que lhes dava era bem paga na justa medida do conforto que lhes oferecia quando o visitavam! Pelos vistos os amigos não consideraram justo pagamento… deixaram de o ser, ou pelo menos deixaram de aparecer.
Há 15 anos que a sua vida se dividia entre a cozinha, a sala, o quarto e a saudade da família, da casa cheia de amigos para o qual contribuía mensalmente com cerca de 10% do ordenado.
Abriu a janela ampla da sala feita em alumínio duplo para evitar os ruídos da rua para a qual contribuiu com metade do salário de um mês…
Debruçou-se na janela aberta e calculou os metros até à rua, seriam pelas contas dele cerca de 12 metros. Debruçou depois o olhar novamente sobre a sala, as fotos dos filhos em criança… da mulher ainda nova… do primeiro neto… de um grupo de amigos no secundário…!
Precipitou-se no salto calculado de uma vez só… Demorou pelas contas dele cerca de dois segundos e meio até bater no cimento frio. Não teve tempo de calcular os metros quadrados de calçada que estragou com a queda!

 
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jaber
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 13/09/2017 18:24  Atualizado: 13/09/2017 18:24
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 Re: a medida da morte
Dois segundos e meio.
Uma eternidade, segundo enormes variáveis, não fosse tudo tão relativo. Até o tempo. Como quinze anos podem passar a correr. Enquanto se olha e retira os olhos do relógio.
Gostei da "medida da morte". Cheia de rotinas, de realidades vistas, ou ouvidas. Com a particularidade de, na última frase, ficar-se com a ideia de que quer por hábito de profissão, ou vício pessoal, faltou-nos ver o contabilista levantar-se da sua morte e contar o estrago.
Se acontecesse, seria o começo dum estranho texto a roçar o terror ou o fantasmagórico.
Um relato dum suicídio bem escrito, porque a morte apenas faz parte da vida de toda a gente.

Gostei de te reler neste registo mórbido.

Abraço

Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 14/09/2017 00:01  Atualizado: 14/09/2017 00:01
Usuário desde: 03/09/2012
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 Re: a medida da morte
Jaber
Feliz com seu retorno! Adorei a crônica! Penso que esse contabilista tinha um seguro de vida e antes do salto para morte, fez o cálculo de quanto deixaria para seus beneficiários! Rsrs
Beijos!
Janna

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/03/2019 03:02  Atualizado: 23/03/2019 05:08
 Re: a medida da morte
A crónica está bem feita. O que me intriga é que que o personagem cobre algo que deu, como conforto e pretenda receber em emoção ou será em gratidão? É que por vezes a ingratidão olha dessa forma quem ajudou, como desculpa a si mesma. É se deu suicídio é mesmo triste.
Lembro aqui quem abandona seus pais idosos mas não desdenha as herancas...