Sou o bruxo da minha tribo.
Todas as manhãs, antes do cantar do galo, num escuro cedo, caminho pelas matas minhas e dos vizinhos.
Num castro mais velho que os mais velhos, guardo as pinhas vomitadas pelo saco de juta.
Sou descendente de lobos, e quando me dá para me defender, ou aos meus (face em que carinhosamente me auto-intitulo cão-de-guarda), é à minha ascendência que devem temer.
Na minha busca da explicação para fenómenos estúpidos, tenho o cuidado de contrariar a minha natureza e ir a um de cada vez. Se me deixarem, faço tudo ao mesmo tempo, como polvo tresloucado. E mal.
Em dias bons, faço o trabalho de meia-dúzia de seis homens, com o dobro do meu tamanho, com cinco vezes mais eficiência. A mesma eficácia.
Nessas ocasiões, não esperem sorrisos ou, por outro lado, esperem que me relacione convosco como nunca ninguém o fez, resolva os vossos problemas, além de todos os outros do resto da tribo.
Pena a falta de consistência.
A existir, estaríamos a falar de alguém sobre-humano, um Cristiano Ronaldo dos bruxos do Norte.
O que não sou.
Sobre o estranho facto de não ter chovido nas últimas estações, deu-me para por-me à conversa com "o velho que sabia ler as nuvens" para ele me dar o seu parecer.
Não tenho o dom da omnisciência, por isso, peço o parecer de especialistas, como é o caso do velho da aldeia.
Ele retorquiu num gaguejar rouco e imperceptível, que elas andaram de pernas para o ar. As nuvens. E que o vento forte, Bóreas, que arrastou as labaredas, as afastou para o "lago maior".
O ar em movimento anda mesmo filha-da-puta, carai.
E eu, com esta sede, que me chama os uivos.
O Verão a Agostar, e oiço rumores de que, das outras tribos, não se quer que a bebamos.
Há um estado qualquer que o diz.
Um estado de "pouca graça".
Mas, se ela não cai?!.
Passadas duas semanas, num estado (lá está ele) de semi-transe provocado por uma insónia de três dias pela secura, senti no joelho esquerdo uma alteração física, um tipo de dor singular que me acontece quando o tempo muda.
Fui falar com "o velho que sabia ler as nuvens" e encontrei-lhe um sorriso mudo.
Fiz as rezas ao sol, meu protector das sementeiras e das recolheitas.
Fiz a ladaínha às barragens, ao deus rio Douro, ao menor Tua, às linhas de água, aos poços, por ora secos.
Ontem, fiz a dança-da-chuva.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
Aos interessados, podem ler acerca do meu acessor em assuntos de metereologia, pelo que o anormal do meu primo escreveu.
Acho que o conhece da minha aldeia. Como a mim.
Não me apetece copiar o URL mas o título é mesmo:
"O velho que sabia ler as nuvens"
(falta de originalidade...)