Poemas : 

Sobre o poema

 
1.
"Há já muito tempo que não escrevo um poema"
E não me tem feito falta alguma
Tenho acumulado, neste bloqueio de estro, dias vazios
Leveza nos ossos, espasmos no tempo e folhas em branco
E já são tantas
Que podiam causar-me diferença
Nos braços cruzados sobre a barriga à míngua de letras
Ou na fome de as escrever
Sobre qualquer coisa muito açucarada.

Quando o tédio da vida corre diabético nas veias
O melhor é não escrever indigestões
E adoptar uma dieta de versos.

"Há já muito tempo que não escrevo um poema"
Tenho acumulado folhas em branco
E dias vazios, imaculados
E são tantos
Que se os escrevesse agora, já fora de prazo
Tinha de joga-los no lixo com as letras amarrotadas
Impróprios ao consumo de quem têm muito apetite.
O tempo faz destas coisas à vida e ao poema também.

2.
O poema não quer saber da poesia para nada
Nem do poeta que o escreve
Assim que nasce emancipa-se, corta os laços da filiação
E tenta encontrar um lugar no mundo
Visibilidade, espaço, com sorte, fama

O poeta erra ao querer defender o poema
Ao tomar-lhe as dores
Ao querer tutela-lo até ao último dia que vive
E depois, quando morre
O poeta espera que o poema lhe vá levar flores à campa
E que não deixe esquecerem-lhe o nome

O poeta erra por pretensão
Porque quer brilhar mais que o poema
Mas o poema, órfão por opção, não se importa
Pois sabe que não está nas mãos do poeta
Ser adoptado pelo mundo ou não.

3.
O pensamento maltrata o poema
Tortura a palavra
Intelectualiza, à força, a ideia
Que era simples e pura
Formosa e sem forma
Tornando-a mecânica e dura

[Estende-se com lógica pela linha do verso
E mata a rima]

Então, o poema mente, por vezes
Outras, assume o pecado
Mas nunca se rende
Nunca recua na folha vazia
E no fim, aos olhos de todos
Depõe feito réu
E é declarado culpado.


Viver é sair para a rua de manhã, aprender a amar e à noite voltar para casa.

 
Autor
silva.d.c
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 01/07/2017 16:06  Atualizado: 01/07/2017 16:06
 Re: Sobre o poema
Poema magnífico -- curioso, não haver por aqui comentários...

Partilho consigo um texto de que gosto muito, porque sei que irá compreendê-lo sem "intelectualizar":

A Poesia Vai Acabar, de Manuel António Pina

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —




Enviado por Tópico
atizviegas68
Publicado: 01/07/2017 17:24  Atualizado: 01/07/2017 17:24
Usuário desde: 09/08/2014
Localidade: Açores
Mensagens: 1538
 Re: Sobre o poema
Poema soberbo!
"Há já muito tempo que não (lia) (...) um poema" (assim).

Obrigada por este momento de "poema".

Um abraço