As ruínas situadas ao norte de Fingergod receberam o nome de Antytcítera porque lá era a fronteira que separava as duas cidades. A cidade de Anty, e a sua irmã, a cidade de Cítera. Na verdade, não separava, unia! Antycítera era a cidade onde viviam em harmonia os seres humanos de Anty e os dragões de Cítera. Mas não eram dragões malignos, como se ouve por ai. Na verdade, eram sábios e bondosos, e a única semelhança entre os dragões mitológicos e os de Cítera, eram o tamanho e a capacidade de voar. Na verdade, os dragões de Cítera tinham asas como as de pássaros, de penas imensas e coloridas, e o seu corpo e cabeça lembravam um cão da raça daschund, de orelhas grandes e fuça comprida.
O que os unia nos primórdios, era a necessidade que tinham um do outro. Os dragões eram sábios e poderosos, embora não pudessem se expressar em palavras, e nem possuíam um dedo polegar em suas patas, o que dificultava muito para eles a manufatura de objetos, casas e ninhos. Já os homens, que construíam para os dragões as suas casas e ninhos, ainda gozavam da companhia de seres sábios e enormes, o que afastava qualquer tipo de inimigo, sobretudo, os inteligentes.
Assim, viviam em paz e unidos. Até que pela inveja da cidade e capital, Gálata, um conflito foi instalado entre os dois. E os dragões banidos para sempre do convívio humano. Como eram sábios e justos, se retiraram.
Isso foi há novecentos anos, e agora, um peregrino de armadura brilhante e mágica, precisava dos conselhos de um certo oráculo. O oráculo de Fingergod, ou a montanha do dedo de Deus. Essa montanha era uma formação rochosa de dois mil metros de altura, situada na planície central de Ascantha, e que se elevava ereto e firme como um dedo indicador!
Lá em cima, depois de peripécias inenarráveis, chegou o herói necessitando de conselhos:
- Para dar-te essa informação, terás primeiro que me fazer um favor! - disse o oráculo.
- Qual seria este favor?
- Como oráculo eu posso ver tudo! Os meus olhos alcançam distancias e lugares inimagináveis. Mas quando olho na direção de Cítera, a minha visão é obstruída, e de lá em diante não vejo mais nada. É o dragão mágico que ao abrir das suas asas obscurece a minha visão! Mate o dragão! Traga-me uma pena de suas asas para confirmar o feito, e lhe direi o que precisa saber. Essa é a condição.
- Dragão? Mas eles não existem mais...
- Ouça o que eu te digo, e se quiseres a informação, terá de cumprir essa missão. Ou terias tu, medo de um dragão?
- Aguarde-me em dez dias, e lhe trarei a pena que tanto deseja.
E assim, partiu o peregrino e a sua armadura, em direção à antiga cidade de Antycítera, para cumprir o seu destino, seja lá qual fosse...
A imensa cidade abriu-se diante dele feito um leque, tomada por trepadeiras e musgos centenários, que lhe emprestavam um tom verde, envelhecido e saudoso, e cercada de estátuas e mais estátuas de dragões, tão grandes quanto árvores. Tinha sido uma cidade maravilhosa, ficaria ainda mais bela que Gálata, se o ciúme desta não tivesse destruído a relação dos homens e dos dragões, fazendo deles inimigos.
Dizer que o cavaleiro estava ansioso para encontrar o dragão e lutar contra ele seria forçar demais. Os dragões já eram lendas naquela época. Mas se o oráculo disse que ele encontraria um dragão ali, então um dragão ele vai encontrar! E se, pensava ele, eles forem tão grandes quantos aquelas estátuas, então a coisa ia ficar feia pro seu lado, não importando que armas mágicas ele carregasse.
Quando já tinha vagado por quase metade da cidade, e maravilhado-se com corredeiras artificiais e prédios de vidros de mil anos, chegou a conclusão de que não haveria dragão algum. Os anciões, mesmo eles, diziam que os dragões houveram sido uma invenção das mentes mais férteis, que ao passarem por Antycítera e verem aquelas estátuas imensas, criaram as histórias.
É, mas enquanto chegava a essa conclusão, alguma coisa tirou o seu sol e veio crescendo feito uma sombra que só crescia e não parava de crescer, mesmo quando já tinha ficado chato. E a sombra atrás dele, que ele fazia questão de não olhar para ver o que era, abriu uma asa de uma envergadura tão assombrosa, que cobriu de sombras toda a praça diante dele e a alameda de trinta metros mais adiante! Só o breve vento jogou o seu elmo de prata pra cima ,como se fosse um chapéu de palha de um camponês capiau. Só faltou o matinho na boca.
Quando, e por motivos óbvios, teve de olhar para trás, para salvaguardar a sua própria integridade física, encarou uma criatura tão imensa, que não pôde deixar de imaginá-la devorando-o e palitando os dentes com o que restara da sua armadura brilhante.
Um fabuloso ser erguia-se sobre as quatro patas, cujas asas curvavam-se feito um arco-íris multicor logo atrás de suas costas, e de um olhar tão penetrante, que a única coisa que restou ao pequenino e humilde cavaleiro fora, correr...
E assim, correndo como nunca, não num ato de covardia, mas de inteligência, já que enfrentar semelhante ser, cara a cara, num embate de forças desproporcionais, cairia irremediavelmente em derrota tão acachapante que seria cantada e recantada dos aposentos da mais imunda taverna, aos mais encantadores salões da corte palacial!
Atrás dele, como uma rocha enorme que de repente despenca da montanha, desgovernado, veio o dragão furioso entre colunas de mármores e escadas de pedra: E pulava o cavaleiro de um lado, vinha o dragão do outro! E subia num telhado, quebrava o dragão o prédio inteiro! E subia na árvore, eis que o rabo do dragão varria os troncos numa só lambada! Grande ele era, e pior, ágil também!
A única esperança do cavaleiro, que precisava de um tempo para pensar, seria o canal de escoamento de água, estreito e fundo, logo abaixo da avenida da cidade. E lá foi ele! Abrigou-se na canaleta úmida, sabendo que o dragão ali não entraria. Mas as lendas dali sobre os dragões, não mencionavam o fato de que eles eram exímios fabricantes de fogo! Afinal, eles sempre foram pacíficos, e se houve um dia em que precisaram chamuscar um ou outro desavisado, fora em outra era, ainda mais antiga do que a da convivência homem e dragão.
Recuperando o fôlego, na certeza de estar seguro, sente um cheiro estranho, indefinível, vindo da direção do dragão. Quase como um bafo, só que pior! O dragão realmente soltara um arroto na sua direção, e na ponta do rabo dele existia uma bifurcação, que terminava em duas bolas de um material vítreo e duro, que ao se chocarem uma na outra soltava uma pequena lasca de faísca, que em contato com o gás exalado do dragão... Provocaria um efeito que deixaria com vergonha uma bomba de napalm.
E não deu outra! Numa chicoteada de rabo, um fogo tão absurdo emanou tomando conta do lugar, que se a armadura do cavaleiro não fosse mágica, e ele não fosse realmente habilidoso e excelente guerreiro, acabaria aqui toda essa ladainha.
É, mas não acabou: E ele enfrentou aquele inferno em volta de si como pôde. Eu me lembro de ver apenas sombras e vultos em meio as chamas, ora como uma grande boca que buscava devorar um homem, ora como um homem escalando o pescoço e a cabeça de um grande monstro, e assim, em flashes de chamas, luzes e sombras, assisti à luta dos dois, sem saber se alguém ali ganhava ou perdia.
Mas no calor do embate, literalmente, de repente, um dos dois evade! O dragão abandona a batalha e volta as suas atenções para uma parte superior da cidade! Sobe inconformado e apressado, rasgando as chamas atrás de si, deixando o cavaleiro sem entender nada, embora aliviado.
O dragão estava distraído, dera as costas para o guerreiro, era a hora tão aguardada! Atravessar a lâmina mágica no lugar certo atrás da cabeça, daria fim a qualquer criatura. Não seria difícil, escalaria o edifício atrás dele, e sorrateiramente pularia sobre o dragão, desferindo o golpe fatal.
Mas ao chegar lá em cima, entendera o motivo de aflição do temível ser com o qual lutava. E em meio a alguns ovos, uma criaturinha gania por proteção frente ao fogo que avançava! Sim, os dragões são imunes ao fogo, mas os seus filhotes, ainda não!
E agora, o que faria o cavaleiro frente a tal impasse? Para muitos talvez não fosse um impasse, seria uma oportunidade... mas para ele...
Destruir o dragão e a sua descendência, e conseguir cair nas graças do oráculo. Salvar um ser ainda inocente, pelo amor de uma mãe, ainda que essa mãe queira comê-lo bem passado! E perder a chance de obter a informação tão importante que só o oráculo poderia lhe dar...
É, mas essa é uma história sobre heróis, senão eu nem a estaria contando. E foi com a sua espada mágica que correu em direção aos canais de água e a ergueu, tirando a água do seu leito úmido, como mil braços prateados que serpenteavam entre as árvores, milhares de litros que se suspendiam no ar! Porque a sua espada controlava os elementos, e era imprescindível que ele controlasse a água, e com ela extinguisse o fogo que ardia sem saber a quem.
Num só gesto, uma descomunal quantidade de água dos canais, vindas na forma de um grande vórtice dançante, jorrou as suas bênçãos úmidas sobre a indócil chama ardente.
A fumaça do fogo extinto subiu como uma fabulosa onomatopeia de aliviado frescor. O pequeno dragão parou de chorar, e ao ceder da fumaça, o grande rosto do dragão mãe surgiu diante do cavaleiro! Os olhos grandes da criatura pareciam carregar uma ternura que o cavaleiro não percebera num primeiro momento. Olhando assim de perto, sem a tensão inicial e o medo terrível, o grande monstro até cativava, apesar do tamanho e dos dentes enormes.
Os dois, curiosos, se entreolhavam, como se só agora tivessem sido apresentados. Pareciam se estudar mutuamente, e de uma certa forma, gostaram do que viram.
E se o oráculo havia lhe pedido uma pena da asa do dragão, por que não levar a asa inteira?
E então, alçou voo o gigante alado, diante do céu púrpura da tarde daquele dia, levando às costas um deslumbrado novo amigo, que mal se continha de tanta satisfação. E o dragão, contagiado, frente à alegria do que carregava, rodopiava no ar, mergulhava em rasantes vertiginosos, e subia em espirais de tirar o fôlego... Para depois, e só depois de mil peripécias, planar suavemente ao leve bater de suas asas em direção ao horizonte distante.
E assim foi, e os dias da viagem de volta se transformaram em horas da mais linda experiência que já teve, pois que o mundo houvera se esquecido da última vez em que um homem voara nas costas de um dragão! Lá de cima assistiu ao mundo, e ao transcorrer de seus vales e montanhas. Dos castelos e palácios que visitou, e dos que não visitou, também. Rios correndo como espelhos chão afora... Lagos ocultos entre as montanhas... Pradarias douradas e bucólicas, que se apertavam num único abraço. Durante as cinco horas da viagem, não se ouviu um pio.
A montanha do grande dedo surgiu diante deles, mais cedo do que realmente desejavam. E o dragão de Antycítera pousou com as suas enormes garras no topo do lar do oráculo, abalando o ar com as suas enormes asas coloridas, e colocando no chão o seu mais novo amigo.
O oráculo aproximou-se, mas não se mostrava surpreso, como o cavaleiro supunha encontrá-lo. Serenamente, aproximou-se do dragão, e a criatura declinou a sua cabeça para receber um atencioso afago do misterioso homem da montanha. Os olhos de oráculo sorriram, e ele disse:
-Sabe a quanto tempo um homem não voava sobre um dragão?... Você provou que pôde ver além das aparências, e viu na estranha criatura, a bondade que ela trazia dentro dela, apesar de todas as outras coisas. Agora eu posso dizer-lhe o que veio saber, porque cabe só a você saber, e guardará com honra esse segredo, pois só quem tem um grande coração pode guardar grandes segredos. Pois a sabedoria dos dragões consiste em enxergar e testar o coração de um homem, por isso o enviei lá!
E assim a história continuou. E aquele fora o primeiro passo para a reconciliação entre os homens e os dragões! E não tardaria o dia em que todas as pessoas daquela terra voariam nas costas de seus amigos dragões outra vez. Como oráculo eu já sabia disso, centenas de anos antes dos dragões e dos homens existirem...
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