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Mortos não escrevem cartas

 
Mortos não escrevem cartas

Dizem que os mortos não escrevem cartas. Dizem muitas coisas por aí, e é preciso uma grande dose de conhecimento e de boa vontade para reconhecer e separar as verdadeiras das falsas.
Já deixei de me importar com o que dizem. De onde venho, afirmações humanas não importam mais, deixaram de ter importância e sentido prático. Se entendessem o meu modo de existir, entenderiam também as minhas alegações. Pois em toda a história humana, nada fora dito que permaneceu, e mesmo as mais consistentes “verdades” duraram pouco, a verdade de hoje é o engano de amanhã. O que é bonito hoje, feio será amanha... e vice-versa. Então, para mim que agora vejo além das paisagens e dos horizontes definidos, com tudo se misturando em um turbilhão sem tempo e sem espaço, compreende-se rapidamente a efêmera e frágil durabilidade das verdades terrenas.
Aproximo-me, temporariamente, de uma forma que você não pode entender agora, como se eu dirigisse o meu olhar a uma lembrança querida, há muito amada, de um sonho que tive tempos há imemoriais, e do qual jamais me esqueci. Falo comigo mesmo - uma carta escrita de mim para mim - por mais estranho que te possas parecer, como uma tentativa, quase frustrada, de matar a saudade de mim mesmo para comigo. Mas,acredite em certas verdades... elas existem. Ironicamente, as verdadeiras verdades são impalpáveis! Quem já teve saudade sabe disso... Você não pode, por definição, tocar em uma saudade, mas pode, por absoluta, tê-la. Aquele que a tem sabe incontestávelmente disso. Chega a poder tocá-la, ela lhe pesa e obstrui o seu caminho... Um dia, um adulto se detém em meio a uma estrada, olha para trás, e vê a criança que um dia foi... e sente falta dela. Quero voltar e abraçá-la, romper aquela névoa que a encobre e a impede de ver, quero contar-lhes as aventuras e desventuras que irá viver, e torná-la mais forte do que supondes ser. Desejo pegar em suas mãos frágeis, e atravessar com ela as noites dos tempos, livrando-lhe de percalços desnecessários, dos prazeres inúteis, dos enganos cruéis... Mas não posso! Se eu fizer isso, eu não serei quem eu sou hoje. E é preciso ser eu, para amá-la e respeitá-la. Só posso dizer, entre tantas palavras indefiníveis, que tudo dará certo!
Mas, então, lembro-me de que já fiz isso, lembro-me, perfeitamente, da carta que li há milhões de anos atrás - embora haja uma redundância nesta construção gramatical que poucos entenderão o sentido. E escrevendo isso, sorrio meio sem jeito, sabedor já de nossas possibilidades, de que tudo o que podia fazer já fora feito. E de que não há nada de que se arrepender. Aquela “criança”, que vejo agora em sua dimensão infinita e probabilidades sem iguais, seguirá o seu caminho, e a despeito de tudo, será feliz no final! Residirá dentro de mim, num lugar cálido, carinhoso e cheio de boas lembranças, adjetivos imateriais demais, mas cheios de verdades e concretudes em si mesmo. Essa mesma criança - ela própria - me ajudará a escrever a carta que um dia irá ler, confusa e com os olhos brilhantes - como toda criança deve ser - como quando vê rasgar nos céus uma estrela cadente, e perguntando-se encantado e cheio de curiosidade; o que vem a ser aquilo.
Eu tento explicar-lhe que aquilo é ele. Uso todas as palavras que ele pode entender, e algumas que ele não pode, mas que servirá para despertar a intuição dentro dele. “Aquela estrela é produto dos seus sonhos, e de que toda a vida é um sonho”. Mas isso em nada a diminui, pois todos os sonhos são grandes em si mesmos, e é um privilégio para a vida ser um sonho. Pode não parecer agora, porque há um período na vida em que precisamos nos esquecer-mos disso. Tem a ver com picos e vales de uma onda, e que quanto mais fundo você vai, maior é a euforia ao voltar!
Esquecemo-nos, às vezes, de que são os sonhos que nos movem! E quando alguém chega e diz: “Tu és um sonho”! A pessoa se sente diminuída, sem entender que o tudo seria nada, se não fosse um sonho. E que não há demérito algum em ser um sonho, um sonho de Deus.
Tudo, antes de existir, foi um sonho. Fora um sonho, na mente de um arquiteto, o prédio que agora ele vislumbra.
Espero que entenda, um ou outro, que sonhei este menino antes de ser ele. E que ele me sonha agora, ao escrever esta carta. Você só não pode absorver isso tão perfeitamente quanto eu, porque você ainda acha que existe um passado e um futuro, e mesmo um presente. Você ainda acha que para chegar ao topo da montanha, você deve deixar a sua base, pé ante pé, até chegar ao cume, tempos depois. Mas basta imaginar-se lá. A imaginação é mais poderosa do que o conhecimento!
Digo-lhe isso, porque é preciso que entenda um dia, criança, que o seu mundo é sonhado, e o que esperar dele é o que ele será. Portanto, não espere o pior dele. Quando você dorme com maus sentimentos, tem pesadelos.
Tenha a graça de existir. De ser livre! Deseje a liberdade do outro, a verdade, autenticidade, amor e compreensão! E que sonho maravilhoso poderás ter! Não se restrinja ao egoísmo, ao orgulho, a poucos predicados que possam limitar seu sonho. Um dia vai entender que o todo o seu sonho é você. Talvez você volte e escreva uma carta tentando explicar isso... Mas digo-lhe: “Serás preciso amar muito o que deixastes para “trás”. Para abandonar o que tens agora, luz eterna e plenitude em si mesmo, para voltar a uma dimensão escura, e tentar explicar o inexplicável, para aqueles que ainda amam a escuridão.
Só desejo uma coisa àquele que fui... e de que de muitas formas ainda sou, dentro dos muitos eus: Que ele se basta a si mesmo! E sejas feliz com o que és! Porque, no final, ele não é o que ele tem, mas o que ele É! Todas as outras coisas são fantasias. E fantasias não são sonhos.
Quanto aqueles que disseram que os mortos não escrevem cartas, eles estão certos! Nunca estive tão vivo quanto estou agora. E o meu agora se chama eternidade.

Mono





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London
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