Textos : 

ego sum qui sum

 
ego sum qui sum
 


Só consigo escrever sobre a função de escrever. Minha inspiração está focada nos processos da própria inspiração. Estou perdido. Escritor monotemático. Eu mesmo tenho preguiça de ler os desenvolvimentos do que penso. Às vezes, me nego a transformar as ideias em palavras escritas. Fico martelando frases na cabeça, elas vão aparecendo, analiso os significados delas, sei de onde vêm. Vêm da mesma voz. A minha voz narrativa só narra suas próprias questões. Não consigo transportar a função literária para fora do fazer das letras. Minhas letras são sobre o parto dessas mesmas letras. É pensando sobre o ofício de escrever que eu consigo organizar o que tem de ser escrito, consigo abrir a porta para que as letras passem carregadas pela voz, que diz ser minha. Minha inspiração espiralada num único cômodo.

Eu pretendia falar de outras coisas. Poderia encontrar nas histórias dos meus dias a dias, algo que eu pudesse usar como estímulo iniciador da inspiração. Como se eu fosse relatar a coisa ocorrida, com função de letras, deixando-as dançar entre o que é a verdade e o que não é. Entre o que é inventado na hora da escrita e o fato, ocorrido, escorrido no texto. E de repente, me vejo pensando que os fatos dos meus tais dias, não merecem nem desejam ser letras. O que quer ser letra em mim é a própria coisa em si. É a necessidade de escrever sem ter o que dizer. Escrever sobre escrever, sobre como os textos aparecem na minha cabeça e saem rapidíssimos como pequenos desenhos na folha do papel escolhido.

Se eu sou o escritor do mesmo tema, quem dera o tema fosse lua! Já foi. Quando sou poeta, inevitavelmente caio na lua, é lá que moram minhas metáforas de poesia, meus versos.

Acabo percebendo também que ao escrever sobre o mesmo tema, estou escrevendo, em última instância, sobre mim mesmo. Sou eu o objeto narcísico da minha inspiração. Automuso, cujos fatos dos dias não são mais interessantes e líricos que ele mesmo, sentado em silêncio com tintas e papéis nas mãos, pensando sobre as tintas e os papéis e como ele uniria ambos para produzir algo. Texto.

Tudo serve de inspiração e nada serve de inspiração. Eu poderia escrever sobre qualquer coisa, sobre o caramujo que pensei em matar no jardim e não o fiz. Quando estive lá novamente, ele não estava mais, mesmo tendo se deslocado vagarosamente, como se deslocam os caracóis ou como se decidem, pessoas como eu, sobre o que matar ou escrever nas horas da vida, dos dias.

Tudo é autobiográfico, automimeografado. Alto. Tudo fica nas alturas de mim mesmo, meu olhar de umbigo sobre o mundo. Daí eu me sinto sujo, incoerente, incompetente. E o monotema deixa de me interessar. Eu mesmo não me aguento por tanto tempo. Meus dramas de letras vão fazendo o mesmo rito e vão me enclausurando, fazendo em torno da minha alma um labirinto.

Então, eu não escrevo nada. Eu me deito nu, no meio do labirinto e fico sobrevivendo com os olhos abertos, para ver se enxergo o cometa, a fagulha, a missão. No final, é sempre igual. Escrevi sobre muita coisa e sobre nada. Escrevi sobre a mesma coisa, afinal.

Imagem: Incógnita Instigante (Magritte)

 
Autor
thiagodebarros
 
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