A casa dos meus pais, onde passei a minha adolescência, fica num daqueles quarteirões antigos em que os prédios se dispõem à volta de um espaço aberto, formado pelos pátios dos andares térreos. O quarto que me tinha sido destinado, o meu primeiro espaço só meu, era nas traseiras da casa, com uma pequena varanda sobre os ditos pátios. Seguindo a moda da época, a varanda foi fechada em marquise onde eu instalei o meu primeiro escritório-oficina-atelier-estúdio. Era ali que eu estudava e, quando podia ou me deixavam, inventava o que fazer com tintas, tecidos, recortes de revistas e fios de lã, escrevia desalmadamente em cadernos que escondia no fundo da estante ou martelava com convicção na minha maior preciosidade da altura, uma máquina de escrever branca e linda a que, ainda hoje, guardo religiosamente. De todas as minhas numerosas actividades a mais famigerada era, sem dúvida, a casmurra aprendizagem de canções dos anos 60 e 70 num pequeno órgão eléctrico, não porque me faltasse ouvido para a música, mas porque insistia em oferecer longos concertos pela noite fora, mesmo em frente à janela aberta de par em par. Muitos anos depois os vizinhos ainda se lembravam dessa minha fase...
A vista que gozava daquele quarto fazia as minhas delícias, principalmente nas noites calmas de Verão, depois do bairro se recolher. Parecia um pequeno mundo que se enchia de sombras, refúgio de gatos vadios que vasculhavam os caixotes de lixo. De vez em quando um cão latia e outros respondiam como se fossem ecos deslizando pela noite. Na rua, muito ao longe - que nestes pátios os sons da cidade são abafados pelos prédios – o reco-reco do eléctrico que reduzia a velocidade para fazer a curva, antes de se lançar na recta da rua principal, deixando como recordação o estalido das faíscas que saltavam do cabo. Ao fundo, quase em postal ilustrado, erguendo-se da mancha escura do casario, o Panteão Nacional, iluminado pelo branco das janelas. E tudo isto era completado pelo cheiro inconfundível das plantas que floresciam dentro do Castelo de São Jorge.
Ontem, sem conseguir pregar olho por causa do calor abafado da noite, saí para o quintal, bem mais fresco que qualquer divisão da casa. Passava por ali uma brisa suave, quase fria, que eu ajudei a cumprir o seu papel molhando todos os bocadinhos nus da minha pele. Sentada num dos bancos que tenho à porta, tentando adivinhar quanto é que faltava para a Lua encher, senti o mesmo aroma das noites de Verão na casa dos meus pais. E eram quase 4 da manhã andava eu a cheirar todas as plantas para entender de onde me vinham tantas memórias. Até que descobri a responsável: uma gardénia que trouxe há umas semanas quando "arrumei" os canteiros. Como é que eu nunca tinha percebido que era esta planta, que eu tanto gosto, a que perfumava os meus sonhos de adolescente ? E foi assim que tomei uma decisão antes de finalmente adormecer: seja por ter muito que recordar ou apenas porque encanta as minhas noites, vou ver se arranjo mais umas gardénias lá para o quintal.
Ainda dizem mal do calor...
E.L
2006/10/06
E.L.