Às vezes penso que ainda mastigo sobre o mesmo altar. Como se o tempo não fosse forte o suficiente para abalar com a fortaleza da minha miséria.
Às vezes não me é suficiente saber que já não arranho os dentes uns contra os outros, às vezes penso apenas que será este o meu infinito, porque é esta a minha natureza, a miséria.
E sei que já não me fere, mas me não deixa de doer. Admito que a culpa deixou de ser tua já há muito tempo.
Mastigo sobre o mesmo altar, mesmo que o queixo me doa. Mastigo as mesmas folhas, das mesmas árvores, em estações diferentes. E quando a estação não permite, e a folha não existe, vasculho entre os cantos recortados de cada sala para poder mascar nem que seja lixo.
Mastigo sempre, intermitentemente, por vezes parando para descansar o maxilar, doutra continuando para torturar. É cómico como a tortura e a dormência dormem de mãos dadas, em lados diferentes da cama. Há que se sentir tudo, para não se sentir nada.
É como se toda as nossas alegorias vivessem em cada poro. É como se tu vigiasse a minha sombra e ficasses para sempre colado a ela, sem nunca me tocar, nem me deixares de tocar.
É uma eterna escuridão e ao mesmo tempo luz, uma eterna graça que me rói e ao mesmo tempo me faz inteira.
É como se não pudesse viver sem pensar que estou a morrer aos bocados.
É como se não pudesse ser feliz, se não for para contrapor com a tristeza.
É esta a minha natureza.
A miséria.
A miséria de não poder deixar de mastigar os escombros da tua sombra, de uma alegoria que já não é tua, mas que precisa de rosto e o teu serve.
Não arrefeces o ego nem tens vergonha de me cuspir na cara que não me queres a deriva, se não me tiveres ao lado.
Dizes-me ser esta a tua paralisia, alimentares-te de mim para que eu também te seja música ou poesia.
Temos de lamuriar, para poder criar. Tu sabe-lo e eu também. Assinámos silenciosamente este contracto, para que nos arrastemos mutuamente.
Cuspo, e levo à boca mais escumalha. Há que mastigar, há que fazer com as que nossas sombras se descolem o suficiente sem deixar que se anulem ou repulsem. Há que deixar o fio algures para puder voltar a ser puxado, em nome da miséria, em nome da criação.
É uma constante tortura. É uma constante adrenalina.
O chicote da memória não é, no entanto, mais poderoso que qualquer morfina.
É lembrar para não esquecer. É esquecer para não lembrar.
Lau'Ra