Corria o tempo de forma compassada no relógio, sem marca, que trazia no pulso.
Não queria descer em nenhum apeadeiro, queria seguir o percurso da linha até ao fim... queria ver até onde conseguia ir. Naquele eléctrico, que tomara como seu, já conhecia todos os bancos e mesmo, todos os nós das travessas de madeira que os compunham.
Mas a sua atenção, ía-se dividindo entre três ponteiros, as pessoas que entravam, estavam e saíam e o outro lado das janelas de vidro cheio de dedadas e marcas de testa. Aquele era o primeiro dia de uma existência sem emprego, sem ocupação. Depois de uma vida cheia com um trabalho, de que até nem gostava mas já fazia parte dos seus braços, mãos e ser, estava agora sem saber o que fazer ao que lhe dizia o relógio.
Tinha sido há quarenta e dois anos, que se havia iniciado como aprendiz na drogaria do Grémio. Hoje, podia dizer que entre o balcão, as prateleiras e o pequeno armazém, não existia grão de pó que não tivesse sido seu confidente. Os clientes de sempre, que foram desaparecendo (coisas naturais a quem anda por cá), sempre o tiveram como pessoa recta e áustera... mas bom ouvinte e conselheiro. Iam, de certeza, sentir a sua falta... mas enfim...
Olhou mais uma, e outra vez para o mostrador do mecanismo que lhe tictacteava no pulso. Aquela máquina não desistia e, pelos vistos, ía sobreviver-lhe. Olhou mais uma vez para três pessoas que saíam e duas que entravam na carruagem... sempre as mesmas de todos os dias... tinham, por certo, afinidade com os ponteiros do seu relógio. Olhou mais uma vez para o outro lado das amplas janelas, para ver paredes e portas que corriam paradas... sempre as mesmas... lá estava o relógio outra vez.
Estava prestes a libertar-se dele.
Puxou a manga do casaco de xadrês para baixo, aconchegou o colarinho da camisa com a gravata de todos os dias e deu um ligeiro puxão no sobretudo para o ajustar às suas costas. Preparou-se com os olhos, com as mãos e com tudo o que tinha, naquele momento medido por minutos... ajeitou-se no banco de madeira, encostou a testa à janela pela primeira vez na sua vida... e fechou por fim os olhos.
Seguiu até ao fim e o relógio não parou.
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.