Era véspera do Natal, na cidade do Rio de Janeiro, em 2001. Não fazia muito tempo eu retornara de Nova Iorque onde presenciara cenas de intolerância, destruição e mortes de vidas inocentes na fatídica data de 11 de setembro.
Tal como lá, as lojas do Centro da cidade estavam cheias, e já se preparavam para cerrar as portas, nas ruas havia algazarra e muita correria.
Nesta época do ano é meu costume caminhar pelas ruas, fugindo da atmosfera consumista dos shoppings. Deixe-me explicar: sinto sempre em meio à atmosfera de compras e festas, uma sensação de vazio quando diviso com o olhar de personagens anônimos do Natal que não frequentam lojas, para comprar roupas, sapatos, brinquedos.
São estas figuras da noite, estiradas nas marquises, após a farta coleta de caixas de papelão, latinhas de cerveja e garrafas de pet (que finalmente encontraram um destino para reciclagem após entupirem rios, córregos e galerias).
Estava passando próximo a uma marquise de banco quando surgiu uma janela de oportunidade, para que me aproximasse de “meus próximos”, mas “tão distantes” seres que no cotidiano nos projeta uma ambivalência, ou seja, nos faz “sentir incluídos” e ao mesmo tempo, “lhes sentir excluídos”.
Este conto, que chamei de crônica de natal, foi para mim, motivo de reflexão sobre a ceia de natal, o espírito que rege este dia e o menino-Deus na manjedoura, que poderia estar em cada esquina ou marquise de nossas cidades, com outra Maria e o seu carpinteiro José, buscando o abrigo que lhes fora negado.
Saibam, bem que poderia ser uma história real, o meu conto, ou quiçá, se pareça uma mera ficção. Mas, de fato, ele pode ter escapado da crônica policial, pois, não houve convicção no relato...
Contudo, ainda que fosse uma história virtual, nestes tempos das maravilhas da informática poderia ser mero boato, ou criação de poeta, e não ocupar nota – que pretensão - na coluna social.
A mesma história se repete a cada virada de ano: jogos de búzios e cartas, astrólogos, videntes etc., todos com suas previsões.
Estas coisas encontram bastante espaço na mídia, que se repete, e há quem ache chato, mas ao abrir os jornais, por via das dúvidas, dá uma olhada para o lado e, de relance uma espiada no horóscopo.
Eis que finalmente surge o conto... (e já não era sem tempo). E não era tradicional, talvez um pouco vulgar, que mesmo depois de pronto, insiste em se recriar e se transformar em história nacional, inserida no contexto do lugar, qualquer lugar...
Como em um quebra-cabeças foram se juntando as peças. A rima da narrativa não encontra alternativa. Há que se falar do conto, ou quiçá do canto, pois no ritual do silêncio se transformou em pranto, então eis o conto em forma de poesia de natal...
Nem nas viagens gramaticais
Pode avançar a carroça da história
Sem que se dê conta da magia,
Da presença de seres angelicais
Recolhendo rejeitos (consumismo), caixas
Na penumbra da noite sem canseira,
Que utilizam papelão e jornal como manta
Olham esta correria com (a mesma) indiferença
Poderia ser uma mera presunção
De um poeta sem qualquer precaução
Querer fazer das ruas, um tablado
Interpretar o teatro vivo do cotidiano
Tomando do pintor uma aquarela e o pincel
Que retrataria o coração pulsátil,
De histórias que ciclicamente se repetem,
Nuas e cruas, nas vilas e ruas acontecem
De Cervantes a Charles Dickens,
De Victor Hugo a Dostoievski,
De Eduardo Galeano a Cecília Meireles
De Carlos Drummond a Mário Benedetti,
Mas onde estará o conto no verso, se o livre discorrer já não retrata o livre viver?
Talvez nas contas de um terço orando silenciosamente, expresse a fé de uma simples mulher, sob a marquise, a revelar com o lenço e olhos fixos, a presença de um estranho naquela cena de profunda intimidade espiritual.
O seu olhar penetra meu ser, com uma leveza d’alma que quase me leva a levitar, ao receber em suas mãos as sacolas, com o que eu imaginava que ela supunha serem quentinhas para o jantar.
Ela revela um breve sorriso, só possível de se fazer ouvir na leitura labial, o seu gesto de agradecimento foi muito tocante.
Então, fiquei impassível (confesso, até certo ponto, curioso), à respeitável distância, acompanhando o desenrolar do ato que me comoveu de forma muito profunda.
Aquela senhora, cujo nome sequer eu ousei perguntar (afinal não eram necessários tantos protocolos, identidades etc. para este ato), abre cuidadosamente as sacolas e, quando desvela o conteúdo, vê tratar-se de comida e frutas, para àquela altura, uma inimaginável sagrada ceia de Natal.
E antes que eu tivesse tempo de lhe
entregar o vinho e o panetone, que estavam em uma terceira sacola, eis que ela acena para outros tantos no abrigo da marquise, para que soubessem do inesperado presente oferecido pelo desconhecido cavalheiro.
Em seguida, eu ofereci a sacola, ao que prontamente ela assentiu com a cabeça, deteve-se por um instante a mirar o rótulo da garrafa de vinho.
Aquela senhora e todos os quatro moradores de rua acocoram-se sob a marquise. Ela estendeu um largo papelão como toalha, e antes de partilharem aquele jantar improvisado, juntaram-se em uma prece.
Considerei que minha missão estava cumprida e, assim fui saindo de mansinho, ainda a tempo de me virar ao ouvir um deles chamar-me e dizer “hein, hein moço, muito obrigado”.
Ao longe percebi que a senhora da marquise dividiu a cesta das sacolas, transformando em milagre da multiplicação para compartilhar com aqueles que estavam em sua volta, acredito que não lhe importaria quantos eles fossem.
Cativado por esta altruísta demonstração, busquei no encontro dos olhares, a paz daquela noite, e escrevi estas quadras já no caminho de retorno a minha casa.
Não foram precisos títulos outorgados
Tampouco protocolos e etiquetas estilizados
Na verdade, somente poucos gestos singelos
Não eram estereotipados, e sim espontâneos
Para que os elos da corrente
Se abrissem em plena marquise,
E o silêncio contemplativo da noite
Da distante Belém se quebrasse
Para que a universal linguagem do amor
Do chão brotasse, e irradiasse,
E assim se fizesse presente,
No simples desejo de reunir os despojados.
Em improvisada mesa de papelão
Na calçada cansada de tantos passos
Para uma ceia sem estampas,
Em verdadeiro espírito natalino.
Nada a comemorar!
Ou tudo a comemorar, nesta vida sofrida
O encontro acontece por simples ato de doação.
Epílogo
Esse relato é de uma situação que aconteceu na Praça Tiradentes, centro da cidade do Rio de Janeiro. Em meio a tanta indiferença, aquele Natal para mim fez muita diferença, qual seja, a de reduzir a distância entre os seres humanos, por um simples ato de solidariedade e amor ao próximo.
AjAraujo, o poeta humanista, escrito no natal de 2001.
* Na narrativa acabei por juntar elementos do microconto e da poesia, espero que o leitor possa apreciar esta síntese e se emocionar, como àquele tempo (e ainda hoje) esta narrativa me faz.
Imagem: David Hoffman ~ Pessoas sem teto recebem a ceia de natal.