Ando há muito tempo para te escrever, tenho medo que não te lembres de mim, certamente que aos poucos te irás lembrar, assim como eu de ti. Foste a minha fonte de inspiração, o meu refúgio, neste mundo esquizofrénico. Às vezes não me reconheço, mas quando me revejo em ti torno-me enorme, maior que a insónia escondida nos lençóis. Deixei de ver os círculos rodopiarem na parede do quarto, caindo inanimados no chão, na tua respiração, (recordo), ouvir a dor deste dia e de outros que constantemente me assombravam. Sempre o medo a bater forte dentre deste corpo que abraço como uma louca em desespero a olhar o vazio. os cadáveres caiam sempre ali à minha frente, túmulos ou valas comuns, não importa. Dizem todos o mesmo; “Descansa em Paz”. Que tamanho terá o céu, este céu que tantos crêem? Talvez seja do tamanho da guerra feita de pássaros mortos no esquecimento do absurdo. Quem poderá descansar, continuamente, em paz com o estrondo das bombas a roerem-lhes os ossos, com lixeiras de miséria amontoadas que já nasceram sem horizontes. Sabes, nem as recordações podem dar alento ao esplendor antigo, fomos paridos de um desejo que não nos pertence. Sonhamos tantas vezes com o sol a girar nas nossas mãos, com um deus que incendiava a nossa vida, no entanto, até deus se demitiu do cargo que ocupava, agora vejo-o todos os dias à porta do centro de emprego à procura de um trabalho menos penoso. Que não tenha que matar mais nenhum filho para limpar o pecado dos homens. Os homens já se matam todos os dias e arrastam-nos nesta loucura, na cruel superfície de um espelho, enterramos os nossos dias na sombra do capitalismo como prostitutos ansiosos por uma overdose que mate esta morte lenta e desumana.
Conceição Bernardino