PACHA MAMA – a mãe Terra
introito
I
Pelas terras do Peru
Ouvi cantos de ternura
D'uma gente que procura
Com sentimento nu
Acarinhar a Natura.
II
Tem por milenar cultura
Saciar a fome que clama:
Para cada verde rama
A Terra, sã sepultura,
Seu alimento reclama.
III
Ai ai ai ai, Pacha Mama!
Cerca d'esta encruzilhada
Começa a longa jornada
Rumo a terra cuja fama
Desde os Incas recordada.
IV
A terra onde é celebrada
A Pacha Mama, a mãe Terra!
Onde na paz ou na guerra
Antes de seguir estrada
Dons n'uma cova se enterra.
V
Quem de longe se desterra
Deixa à Terra como prenda:
Oferta ao início da senda
Que serpenteia pela Serra
Até chegar onde entenda.
invocação a Pacha Mama
VI
-- "Recebe, oh Mãe, a oferenda
Que em minhas mãos te consagro:
Coca, yicta, vinho e pão magro!
E que cada humano aprenda
Em cada grão um milagro!..."
VII
"Corre nas chuvas o almagro
-- Sangue da terra p'lo chão --
Fertilizando o rincão
Onde só a lhama e o onagro
Têm conosco habitação."
VIII
"Traz ao nosso coração
A abundância do altiplano!
E faz alegre o paisano
Que em teus filhos um irmão
Mire eu sem qualquer engano "
IX
"Urge um amor soberano
D'entre teu ventre materno,
Que vença as neves do inverno
E renove, ano após ano,
Da vida seu ciclo eterno."
lamento cusquenho
X
"Quem fez o quéchua tão terno,
Os homens fez mais risonhos.
Nos cerros frios, os sonhos
Têm dado aos poetas governo
Mesmo que em tempos bisonhos...
XI
Assim escrevem tardonhos
Com versos de nostalgia
Tanta e tão vária alegria
Que mesmo uns olhos tristonhos
Logram enxergar fantasia.
XII
Com as lentes da poesia
Mundos d'aquém e d'além
Indistintos eles veem
A festejar noite e dia
Nas horas de Deus-amém!
XIII
Como nos Andes convém,
Eu mascava yicta com coca
Face à voluta barroca
Que alta arquitrave sustém
E a luz de antigos evoca.
XIV
Flautas na ruas se toca
Pela cidade de Cusco...
São melodias que busco
Aos versos de minha boca,
Nas sombras do lusco-fusco.
XV
Têm um compassado brusco
Havido com arte e engenho,
Que enchem o ar onde desdenho
O espírito tão patusco
D'esse lamento cusquenho.
na trilha dos Incas
XVI
-- "Alto voa! Alma que tenho,
Como os volteios do condor!
Voa mais que o cerro maior
Até terras d'onde venho
Onde deixei vida e amor."
XVII
"Onde deixei o melhor
Que tenho dentro de mim...
Só e inopinado eu vim
Às alturas em redor
A me exigir outro fim.
XVIII
"Vós-outros que amais enfim
Os cantos que antanho fiz,
Ouvi este que vos diz
Das mazelas do confim
Por um dia mais feliz."
XIX
"Perdoai se parecem vis
Ou obscuros estes meus cantos
Que me guiem vossos pés santos
Pelas alturas do país
Aos mais remotos recantos."
XX
"Para andar tantos encantos
Nas trilhas da Cordilheira
Convém, de qualquer maneira,
Antes rezar acalantos
À sombra d'uma figueira"...
XXI
"Do altiplano alta fronteira,
As serranias nevadas
Se estendem pelas estradas
Subindo íngreme ladeira
Através de frias geadas."
XXII
"Junto a profundas quebradas
Anda quem de Cusco sai
E a Machu Pichu se vai
Para dos Incas pegadas
Seguir seja filho ou pai."
XXIII
"Àquele que anda não trai
Pacha Mama, muito embora
Os perigos de cada hora
Ou da névoa que ali cai
E ao caminheiro apavora."
XXIV
"Quase ancestral eis-me agora,
Religado à Terra e ao Céu.
Enquanto do cerro o véu
Logo dissipava a aurora
Que me acompanha o tropel."
XXV
"Paro para no papel
Pôr este caminho em versos,
Recolhendo-me os dispersos
Cantares tidos ao léu
N'este e n'outros universos!"
XXVI
"Lá, era como se imersos
Eu e Deus pela neblina
A ver a que se destina
A vida ainda que inversos
Os dons por sobre a colina."
XXVII
"Deitado em verde campina.
Contemplo o céu mais azul
Que na América do Sul
Se revela após chuva fina
E de chafurdar n'um paul..."
XXVIII
"Lá, no folguedo tribul,
Bailando o Carnavalito
De Pacha Mama o bom rito
Com veste alegre e taful
Celebram para o Infinito."
carnavalito da quebrada
XXIX
O canto humahuaquenhito
Ecoa pelo penhasco!
Festeja esse povo o fiasco
Da morte no alegre grito
Que afasta o olhar do carrasco.
XXX
Assam cordeiros, churrasco,
E se embebedam de chicha.
Lembram do Caludo a rixa
Enquanto com bromas e asco
Desenterravam a bicha!
XXXI
Sem embargo, se azevicha
O boneco d'este diabo
Sempre mais sujo no rabo...
Rastejante lagartixa
Fingindo-se bicho brabo!
XXXII
Enterram, ao fim e ao cabo,
Chamando a celebração
"Domingo de Tentação",
Quando qual cova de nabo
D'ele fazem a doação:
XXXIII
À Pacha Mama enfim dão
No boneco do Caludo
A oferenda e, sobretudo,
Rogam por volver então
Ano que vem a este entrudo.
XXXIV
Bailam e bebem. Contudo,
Alimentam a mãe Terra:
Na cova também se enterra
Da festa um pouco de tudo
E da alegria algo encerra...
grileiros, garimpeiros e ladrões
XXXV
Mas na quebrada da serra
Os ecos d’aquela festa
Vêm aos povos da floresta
Com alaridos de guerra
Contra outra gente molesta.
XXXVI
A derrubar quanto resta,
Da sul-ocidental Hileia...
Na insustentável ideia
Que quase ninguém contesta
Desde a invasão européia.
XXXVII
Uma infeliz verborreia
Que exaltando o Capital
Acima de bem e mal
Como se entidade ateia
De religião racional.
XXXVIII
Onde uma piramidal
Sociedade se sustenta
D'essa riqueza nojenta
Mas inútil se, afinal,
Jamais a todos contenta.
XXXIX
Ao contrário, se apresenta
Como extrema rapinagem,
Que exaure toda a paisagem
E com fúria ultraviolenta
As matas viram pastagem.
XL
Os tesouros da pilhagem
Levam embora deixando
Só miséria e doença quando
O solo exposto à grilagem
Maninho fica esperando...
XLI
Após a floresta arrancando
Seca após seca castiga
A terra que agora abriga
O vazio mais nefando
No lugar da selva antiga.
XLII
Como se fosse inimiga
De tudo o que é bom e belo
Gente que vem no atropelo
Tem co’a Terra eterna briga
D’ela sendo o pior flagelo.
XLIII
Hoje, eu ainda desvelo
Sobre os versos que componho
Quando da fortuna o sonho
Fez terrível pesadelo
E este deserto medonho...
XLIV
Eu ergo os olhos, tristonho,
E contemplo ressequida
A terra antes cheia de vida.
Mas com Pacha Mama sonho,
Rogando alguma saída.
XLV
Se dos Andes a subida
A imaginação transporta
É porque na terra morta
Onde habito está perdida
Toda a luz que me conforta.
XLVI
E tudo que ainda importa
É reduzido a dinheiro...
Teme-se que o mundo inteiro
Por esta via tão torta
Deixe a todos sem sendeiro.
XLVII
E que o valor verdadeiro
Que têm as coisas para o homem
Se veja só quando somem:
Águas que havia de primeiro
Os sóis faiscantes consomem...
XLVIII
Por isso da Terra o abdômen
Ora faminto e sedento
Não gera mais o rebento
Tampouco folhas que tomem
Mais humidade ao relento.
XLIX
Por sob asfalto e cimento
Pacha Mama jaz inerte...
Ainda que em vão eu oferte
Sementes, versos e alento
Talvez o mal não conserte.
L
Rogo a que logo desperte
Após a estação das águas.
E cure todas as mágoas
Por tanta busca solerte
Em tão ardorosas fráguas:
clamor das terras baixas
LI
--“Com novos dosséis e anáguas,
Vem revestir de arvoredos
De novo os planaltos ledos
E o baixio onde deságuas
Os rios com seus segredos.”
LII
“Vem nos livrar d’estes medos
Que têm nos amargurado
Ao buscar do modo errado
De Deus meros arremedos
Em barras de ouro moldado.”
LIII
“Vem lavar tanto pecado
Contra todas as criaturas
E torna de novo puras
Como foram no passado
As almas que tu seguras.”
LIV
“Vem, Pacha Mama, por juras
De novas preces humanas
Trazer a estas terras planas
O mesmo amor que perduras
Nas terras altas peruanas.”
seca na Amazônia sul-ocidental
LV
Estradas interioranas
Seguindo sertões por rumo,
Muitas colunas de fumo
De queimadas nas savanas
Se elevam aos céus sem prumo.
LVI
E depois, calcinado o humo
Só tocos e cupinzais...
Mais pastos, cercas, currais
E lenhas para o consumo
De carvoarias demais!
LVII
Lá, de Pacha Mama os ais
Se escuta por toda a parte...
Onde a terra se reparte
Sobre antigos seringais
Sem que a mão do homem se farte!...
LVIII
Lá, sem beleza e sem arte,
Léguas e léguas cinzentas...
Que d'estas vilas poeirentas
Esconde o céu e, destarte,
A lua e as estrelas lentas...
LIX
Entardeceres magentas
Reluzindo mil fogueiras...
Ardem florestas inteiras
E queimam ultraviolentas
Sumaúmas, castanheiras!
LX
Nada resta das jaqueiras;
Tampouco jacarandás...
Apenas pastagens más
E colonhões nas ladeiras
Com boiadas pastando atrás.
LXI
Do inferno o calor que faz!...
Sem a humidade da mata,
O fogo incêndios desata
E só mais tristeza traz
Enquanto tudo desmata.
LXII
Sobre gente tão ingrata,
Pacha Mama não sorri...
Pois nada mais cresce ali
E a chuva, pouca e sem data,
Como antes nunca mais vi...
LXIII
Tantas terras conheci
Pelo Brasil iguais a esta...
Terras onde alta floresta
A ferro e fogo perdi
Nem pasto ralo ali presta.
LXIV
Ao solo o sol tanto cresta,
Que mais ninguém a semear!
Grandes roças por plantar
A pouca água que nos resta
Vão nos açudes tirar.
LXV
Se a vida não tem lugar,
Pacha Mama silencia...
Resta uma terra baldia
E os homens a penar
Sua existência vazia.
epílogo
LXVI
"Oh doce Mãe, tu que um dia
Nos geraste de teu barro,
Recebe este humilde jarro
Como oferta de alegria;
D'esperança a que me agarro."
LXVII
"Este é um tempo bizarro
No qual de tudo se explora.
A imagem à mente apavora...
Soluço, solto um pigarro
E escondo um rosto que chora."
LXVIII
"As águas se vão embora
Porque tu, Mãe, te ressentes
D'estas matas florescentes
Que tu já não vês agora
Pois das planícies ausentes.”
LXIX
"Mãe, guarda as tuas sementes
Como um tesouro oculto
Até que esse povo estulto
Se liberte das correntes
Em meio a eterno tumulto.”
LXX
“Mãe, que em teu ventre sepulto
Esteja a árvore futura
Até que cresça segura
Sem mais o molesto insulto
Que hoje tanto lhe figura.”
LXXI
“Recebe, Mãe, com ternura
Esta confusa oração,
Feita de só comoção
Diante de tanta amargura
Que me sangra o coração.”
LXXII
“Mãe, abençoa este chão
Com folhas, flores e frutos.
E no labor dos produtos
Dá-nos, Mãe, o teu perdão
Aos olhos de novo enxutos.”
LXXIII
“E que enfim os usufrutos
Que fazemos de ti, Terra,
Guardem a vida que encerra
Teus desejos resolutos
Pelas quebradas da serra.”
Belo Horizonte – 19 09 2016