Poemas : 

Café

 
Entre café e cigarros, despenso. E entre café e cigarros penso que se pedir mais um café e acender outro cigarro haverão mais pretextos para despensar.

Café torrado, escuro como o chão africano, traz-me as terras quentes de onde vens. Sem açúcar que te traia, esse teu sabor amargo lembra a àspera realidade do mundo que eu procuro tocar, para além do berço de ouro em que nasci, cheio de promessas nobres. Sou o idílico europeu que despensa.

Mais um gole de café e parece que vejo a savana a crescer dos meus cabelos e um rio que nasce dos meus pés e se espalha por quilómetros, tapando asfalto e pedra e brotando das beiras relva fresca.

Pelos pilares deste prédio nasce casca dura e rugosa, um pouco por todo o lado consigo ver a mudança que se impõe, como se a natureza a reclamasse o que é seu. E, violenta e miraculosamente, todo este prédio vulgar se transforma num Imbondeiro monumental, cuja sombra protege milhões de pequenos seres, os humanos também. Das suas raízes nascem milhões de rebentos espaço afora, de onde se colhe alimento e abrigo para um horizonte infindo de gerações fartas. E tudo é festa e partilha, e não há mais olhares subnutridos, a não ser de uma alegria que nunca é suficiente. Deste Imbondeiro vejo o mundo, e sei que aqui é onde tudo começa.

Então, peço à minha amada Andorinha que voe e espalhe a boa nova: "A capital do despensamento é ali, no reino no Imbondeiro! Vem amigo, o tempo urge para que comeces a despensar, não percebes?".

Entre café e cigarros, despenso. E entre café e cigarros penso que se pedir mais um café e acender outro cigarro haverão mais pretextos para despensar.

Atónito, parvo de alegria, dou um trago no meu cigarro, e tudo se desfez. O asfalto sugou o rio, as pedras comeram a relva, o betão rebentou a casca em partículas de pó que nem cheiro emanavam. O Imbondeiro morreu e os seus filhos fugiram para o mundo de onde vieram. Estou só e penso.

Amanhã vou trabalhar.

Paulo Coutinho

 
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super_prisma
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 04/09/2016 18:59  Atualizado: 04/09/2016 18:59
Usuário desde: 06/11/2007
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Mensagens: 2123
 Re: Café
Estamos perante um texto impensável.
Andei às voltas com o despenso e, agora que penso nisso, não perdi tempo nenhum.

Despensar, se for como eu penso é aquele sentir primordial, em que agimos sem pensar, premeditar.
Para esse reino do imbondeiro, onde tudo é mais humano, cheiroso e tragável.

Gostei desse mundo paralelo, onde há lugar para o amor universal, e não há miséria.

Pena que amanhã tenhas de ir trabalhar.

Abraço

Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 04/09/2016 19:28  Atualizado: 04/09/2016 19:28
Usuário desde: 03/09/2012
Localidade:
Mensagens: 18165
 Re: Café
Paulo
Minha imaginação foi longe com esse baobá! Rsrs
Corajoso!
Apreciei a leitura!
Beijos!
Janna

Enviado por Tópico
João Marino Delize
Publicado: 04/09/2016 19:31  Atualizado: 04/09/2016 19:31
Membro de honra
Usuário desde: 29/01/2008
Localidade: Maringá-
Mensagens: 1976
 Re: Café
O café está sempre em voga
O qual eu bebo todo o dia
Até parece uma forte droga
Que eu sinto que me vicia.

Abraços

Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 06/09/2016 08:04  Atualizado: 06/09/2016 08:04
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: Café
“Entre café e cigarros”, despensas
e com mais café e cigarros, despensas ainda mais…
porque despensar é isso mesmo: ir do “café torrado” às “terras quentes”, do não-“açúcar” à “áspera realidade do mundo”, do “berço de ouro” ao “idílico” despensador, da “savana” aos “cabelos”, do “prédio” à “casca”, do “imbondeiro” aos “olhares subnutridos”.
E, por este lado, despenso também:
vou das “terras quentes” ao deserto da Namíbia, dos “cabelos” às algas no fundo do mar, do “rio que nasce dos” “pés e se espalha por quilómetros” à imagem de uma raiz que se distende solo abaixo, do “prédio” invadido por “casca dura e rugosa” à de uma casa sobre um imbondeiro…
(mas logo vem a “sombra” que “protege milhões de pequenos seres”, apagando esta imagem e já só vejo essa sombra do imbondeiro onde me encontro - e onde todos se encontram também)
O imbondeiro cresce na vertical, em ambos os sentidos (para baixo e para cima), e imagino as raízes a propagaram-se, levantando toda a calçada existente nas redondezas…
melhor assim, que se apagam os “olhares subnutridos” e, por momentos, se imaginam “gerações fartas” à sombra do imbondeiro
gerações, vale a pena destacar, de despensadores – desses que dão azo à sua criati(vida)de enquanto o imbondeiro se destaca da paisagem, inspirando-os a serem maiores do que ele.
Repete-se o despensamento (antes que as imagens de apaguem) e vai-se buscar mais um cigarro e mais um café…
até que se confunde o cigarro com o café e se traga o cigarro (provavelmente também fumando o café, despenso).
De súbito, o “asfalto sugou o rio”, “as pedras comeram a relva”, “o betão rebentou a casca” e o imbondeiro sumiu…
ficando apenas a solidão de um “penso”.

Um registo fascinantemente despensador.

Enviado por Tópico
JoeWeirdo
Publicado: 08/09/2016 00:24  Atualizado: 08/09/2016 00:24
Membro de honra
Usuário desde: 11/03/2010
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Mensagens: 444
 Re: Café
talvez a combinação preferida dos escritores. café e cigarro. bom pra refletir.
bem escrito, viu.