Crónicas : 

Canto ao menino imaginário ( o "Chaves")

 
O criador que reproduzia em si mesmo as feições de um menino , adormeceu !
Mas não é o pesar;
nem o ôco das almas feridas;
nem o luto dos seus entes ( e não querendo demonstrar, com isso, sinal de insensibilidade à dor alheia),
a razão do cantar deste pretenso operário das palavras, ilustre desconhecido , eu.
Não falo do homem que se vai e nos deixa à sombra de um menino ,
Mas, do próprio menino imaginário que vive em um cortiço,
e mal cabe em um barril jogado ao rodapé de um casebre qualquer,
onde dorme,
sem pai,
sem mãe,
sem nada.
Um quase errante, sem Pátria.

Menino imaginário , como a criança que fomos e que guardamos escondida dentro de nós, trancada com a tranca de incontáveis segredos.
Falo do intangível fogo das saudades teimosamente queimando por dentro, nas lembranças de tempos passados, de mim e de todos, que tu, menino imaginário, nos faz reviver, pois nos tomas pela mão e vamos contigo, por becos e ruas,á nossa própria infância, onde adormecemos criança e, num repente, amanhecemos gente grande, pois o tempo corre ligeiro, com a volúpia dos ventos.

Tú, menino do mundo; de boné-de-orelhas e roupas desalinhadas,
de riso simples e de natureza pueril. Faço de tí a razão deste meu cantar, que enchem de luz este olhar teimoso que trago sobre as coisas e as pessoas e tangem para os longes, para muito além de mim, qualquer resquício de desesperança que tenho no ser humano. Tú, artífice, obra e instrumento do inventor das saudades !
E porque reacendo a esperança, junto as palavras e reorganizo o espírito, no limiar entre o menino que fui e o adulto que sou.

Ligamos a televisão, como à fugir da vida, e te descobrimos, protagonista de um mundo mágico, onde coisas inanimadas ganham vida. Por tuas mãos, papeis e caixas de papelão viram castelos,
e caminhões,
e chapéus,
e navios,
no emaranhado lúdico de tuas fantasias .

Por um instante, sabes burlar o velho ranzinza de bigode grosso e jeans desbotado. Mas, quando a mão opressora te alcança, és menino frágil e choras o choro silente: curto; medido pelo inconformismo mais absoluto.
A mão do mundo pesa sobre todos os meninos pobres , e toda gente que não é convidada para os banquetes nos palácios, á quem só resta cerrar os punhos, bater no peito e lamentar a justiça dos homens, que tarda !

Adultos não entendem !
Não enchergam o coração !
Não conhecem o oculto das profundezas das almas cândidas !
Não vêem além do véu do que lhes é racional !
Não sabem que o verdadeiro amor é o pai de todos os homens de boa vontade; e não entendem que, um dia, a mão vingadora de um Justo pesará sobre eles e reclamará seus filhos !

Anoitece e o silêncio ronda o barril onde dormes.
E , adormecido na noite calada, dorme contigo o peso da orfandade levada sobre os teus ombros, em um mundo carente de afetos;
de alegrias
e da alma lúdica dos meninos.

Gritos e sussurros na noite escura te paralizam de medo. Depois, sómente gotas de águas misericordiosas, aspergidas por mãos amigas, te trazem de volta ao mundo real.

Indiferente á tua realidade, brincas em teus moinhos de vento. Ès o soldado com chapéu feito em jornal, marchando em descompasso ou és capitão de navio reduzido a um barco feito da mesma matéria, singrando os mares de um chafariz, até que vem outro menino trajado de marinheiro, zombeteiro, com seu lindo barco comprado em uma loja.
Como qualquer criança não te rendes aos espíritos de vingança que pairam nos ares. Com isto, ensinas a nós, adultos, que um coração de criança retoma o fôlego e segue em frente, bravamente nadando contra as correntezas dos mares da vida e as procelas dos ressentimentos.
Sabes que a alegria está no que o coração puder imaginar e que a felicidade está escondida dentro de nós, sómente á espera de asas.

Priorizamos a busca por bens;
posições de domínio;
o poder;
o ter,
que anula o ser !

Por isso não se encherga mais a essência ! Porquê ninguém tem tempo para voltar a ser gente.
A Internet,
os jogos virtuais,
os Big Brother’s,
o circo frívolo da televisão,
o hedonismo... !
O entretenimento em demasia isola-nos. Faz com que o humano se sinta inanimado; frio; sózinho em meio a tantos ombros .
Distancia as pessoas, anula sua humanidade; sufoca o amor e tem o poder de ludibriar os afetos. Criam abismos e erguem muros.
Fazem o coração arrefecer e perder a força de lutar contra as coisas que tem a aparência do impossível .

Parece até que não cabe mais poesia no mundo;
que abrimos mão do direito de sonhar.
Culpa dos mares de nefastas tecnologias, de games, de softwares e downloads. Um click, e um passe de mágica transporta-nos á mundos virtuais,
que nos confrontam, abduzem e robotizam.

Mas tú nos ensinas, nas entrelinhas do teu universo , que não devemos anular nossos sonhos ,porque , como todas as gentes do mundo, e nisso somos iguais, ( inclusive os hipócritas; os incrédulos; os violentos; os senhores das guerras...) sabemos que o mundo está mal. Mas ainda há os que sonham e crêem que é possível lutar para fazer dele um lugar melhor para todos, inclusive para os hipócritas; os incrédulos; os violentos; e os senhores das guerras...!

Por isso, ó Chaves, amigo meu e de todos, sigamos juntos...!
Você, menino imaginário e eu, criança que fui e adulto que sou, pisando , ora por entre becos e esquinas, ora por sobre nuvens e estrelas.
E que sejam firmes os nossos passos em caminhos feitos de pedras e de esperança, rumo ao lugar onde um menino sonhador vive, incansável, á espera de asas.

Voa, passarinho, voa ...!

Singela homenagem á Roberto Bolaños, criador do personagem Chaves.
 
Autor
J.Feliciano
 
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