PARTE I - O DESPERTAR
Acordei de um sonho, abismado. Molhado de suor, sentindo vertigem e com as pernas trêmulas - mal conseguindo me manter de pé - cambaleei até o lavabo retirando as remelas da face que enfeitavam o amarrotado e me deparei com o espelho. Naquele instante ele era apenas um pedaço de vidro cortado. Emoldurado. Refletindo a parede ladrilhada através de mim. Nada mais. Naquele instante eu só conseguia enxergar o espelho e a parede. Todo o resto ficou embaçado. A única imagem nítida (que provinha do reflexo dos ladrilhos azulados atrás de mim) era estarrecedora. Desmaiei. De fascínio e de pavor. Pela beleza do mosaico. Pela ausência de mim.
PARTE II - AS LUZES
De volta ao sofá, com o sentidos menos apurados, trupiquei. Em sapatos, livros, sacolas de lixo e outros objetos. Havia um mar de coisas dentro da minha sala. Todas elas, jogadas no chão, sem sentido ou valor algum. Me sentei após acender todas as lâmpadas da casa. Exceto a do banheiro - seria anseio por sobriedade ou mera covardia? O relógio marcava 8 e 17 da manhã. Liguei a tv. Sintonizei no canal de esportes olímpicos e assisti à uma partida. Parecia uma espécie de basquete sem rivalidade. Curioso que no lugar de uma bola, haviam várias. Que mais pareciam luzes de neon. Controladas através do poder das mentes de alguém (dos atletas, de seus treinadores, da torcida ou até de mim mesmo mesmo, quem sabe). Era um tipo de poder sobrenatural como a telecinese. Não sei. Desliguei o caixote. Acendi um cigarro. Cochilei.
PARTE III - O RELATO
Em meio a outro sonho, estava eu. Cercado por uma dúzia de jacarés, dentro da minha própria sala. o sofá onde eu dormia tinha se tornado uma ilha rodeada por dentes. Dentes e escamas. Os animais pareciam inofensivos - um não tinha patas, outro lhe faltava a metade do crânio e alguns pareciam mortos - eu sentida medo, todavia. Ao despertar reparei na rosa cor de champanhe que definhava dentro de uma garrafa de cerveja sobre a mesa. Ela não havia sobrevivido nem um dia. Sequer um dia. E ela era tão bonita. Mesmo depois de morta. Ao lado da rosa, havia um notebook. Abri minha caixa de e-mails e descrevi meus sonhos na página de envio. Porque eu nunca me lembrava deles. Desta vez, por alguma razão, resolvi relatar. Depois, me arrumei para o trabalho escutando música clássica. Saí e peguei o metrô. Achei uma vaga disponível pra sentar num banco não preferencial e me acomodei. Adormeci novamente.
PARTE IV - O MECANISMO
Quando abri os olhos, estava há uma estação de distância do meu desembarque. Caminhei sem entusiasmo até o prédio de 31 andares localizado no centro da cidade. Entrei no elevador. Apertei o 12. Trabalhei. Trabalhei não. O que é que as máquinas fazem? Tudo o que eu fazia era apertar botões. E beber café. Troquei algumas palavras vazias com colegas que não sabia o nome e com outros que me chamavam de amigo. Quem era aquela gente toda afinal? Na hora do intervalo, tirei uma soneca de 20 minutos e adivinha só: sonhei de novo! Desta vez, parecia a continuação de um sonho anterior. Algum que eu havia me esquecido de relatar. O do cochilo no metrô, talvez. Eu era Mozart. E tocava numa roda de samba. Certa música bem triste que eu não conseguia identificar. Logo voltei à interminável labuta. Antes a eloquência do espírito. Previamente, digitei outro e-mail com o enredo dos novos sonhos. Recomecei o processo mecânico até o fim do expediente. Bati o ponto e fui o primeiro a descer o elevador. Sozinho. Graças a deus. Não me despedi de ninguém. Tudo o que eu queria era pegar o meio de transporte mais lento para demorar um pouquinho mais pra chegar em casa naquele dia. E cochilar mais um pouco no caminho. Foi o que ocorreu.
PARTE V - A LUCIDEZ
Durante este repouso não houve projeção alguma. Eu estava ficando cada vez mais lúcido e isso me abateu como frango no abatedouro. O frango, neste caso, era eu. E o abatedor, a verdade. Queria mesmo era escapar dessa tal distopia disfarçada de realidade, ora. No caminho de volta pro cafofo, esbocei algumas notas melancólicas. Sibilando entre os lábios e a alma algo que me fizesse voltar ao meu estado mais criativo. Minha casa cheirava a mofo e nicotina. Todas aquelas coisas ainda estavam espalhadas no chão. Me despi e fumei uma palha enquanto checava meus e-mails recebidos durante o dia. E lá estavam minhas notas. Enviadas para mim mesmo. Movi para a lixeira. Todas elas. Tomei um banho quente que durou cerca de uma hora. Um incenso de alfazema aromatizava o ambiente. O espelho, estava embaçado. Provável. Pela presença da fumaça que emanava do chuveiro elétrico. E pela do incenso. Certeza. Não olhei na sua direção. Não desta vez. Me vesti e fui deitar no sofá. Apático. Aumentei minha dose de calmante diária e apaguei ali. Sem sonho. Sem realidade. Sem mim. Em coma.
Joe.