Morávamos em Santos a 8 quarteirões da praia. Nossa casa possuía um quintal comprido que fazia o fundo de um correr de casas de uma vila.
Conhecíamos todos os moradores, muitos deles tornaram-se nossos amigos.
Na última casa morava uma família descendente de alemães; a mãe, duas filhas uma delas com a filhinha de seis anos – e um rapaz muito amigo de meu irmão. Era gente simpática e muito amável. A mais nova das filhas – Gleide – era minha amiga. Moça estranha de rosto de bolacha com um narizinho de bolinha no centro. Salvavam-lhe a feiúra os belos olhos azuis, mas, os quadris exagerados e coxas de culote estavam em desproporção aos ombros estreitos e seios pequenos. Por isso ela “malhava”, como dizia, em longas caminhadas até a praia e depois à beira do mar. Apesar da minha altura e magreza eu a acompanhava diariamente. Eram momentos agradáveis, de conversarmos e trocarmos idéias.
. Numa manhã, enquanto caminhávamos na praia ela me disse:
- Sílvia, eu arranjei um apartamento na Conselheiro Nébias; é quarto, banheiro e quitinete; fica em cima de um açougue. Telefonei para a imobiliária e soube que a chave estava com o dono do açougue. Vou vê-lo esta tarde; você quer ir comigo?
- Claro! – respondi – Mas só posso ir depois de terminado o meu expediente no colégio.
- Então eu passo por lá às 5 horas e te pego.
Curiosa eu perguntei:
- Por que você vai se mudar?
- Por que a nossa casa é muito apertada. Eles me atrapalham nos meus cálculos e eu os atrapalho com o barulho da máquina de escrever.
De tarde chegamos ao açougue para pegar a chave do apartamento. O dono do açougue estava tomando conta do caixa enquanto dois funcionários atendiam a freguesia.
- Ah – disse o açougueiro – então vou ter duas vizinhas ai em cima? Talvez mais duas freguesas, hein?
Cleide custou a responder porque nós duas estávamos extasiadas com a beleza do homem: cabelos negros, encaracolados, nariz absolutamente reto e olhos de um azul profundo. Quando sorriu exibiu um verdadeiro teclado, branco e brilhante.
Conseguindo segurar o queixo que lhe caíra, Gleide respondeu:
- Eu vou ser a sua vizinha – e estendeu-lhe a mão – Eu sou Gleide e esta é minha amiga Sílvia.
- Muito prazer. Eu sou Omar (quase que perguntei – Shariff? -) e tenho o prazer de conhecer vocês. Podem contar com o estabelecimento e o amigo.
Subimos pela escada lateral do prédio. O apartamento constava de uma sala na frente, um pequeno hall de entrada com a quitinete de um lado e banheiro do outro.
- Se alguém entrar muito depressa é capaz de sair pela janela, brincou Gleide. Ou se alguém espirrar vai causar ventania – concluiu dando risada.
- Aqui eu ponho um sofá de quatro lugares para me servir de cama; deste lado uma poltrona e na frente dos dois a mesinha de TV. Neste canto, ao lado da janela a minha escrivaninha e a máquina de escrever. Estará pronto o meu quarto e escritório – disse a minha amiga com entusiasmo.
Acompanhando a sua alegria eu propus: Pode convidar o deus grego-de-olhos-azuis, aí de baixo para nossa comemoração. Eu trarei a champanhe!
Foram momentos de muitos sonhos e planos.
Eu havia ficado noiva e já preparava o meu enxoval.
Uma amiga de minha mãe nos indicou uma ótima bordadeira, Ruth, que bordava à mão e à máquina.
Seus cabelos castanhos e lisos, ela trazia presos à nuca com fitas ou “maria-chiquinha” como naquele tempo se chamava, para este fim, um elástico colorido e enfeitado. Ruth era além de bonita e delicada, extremamente gentil. Casada, possuía uma filhinha de seis anos, linda e mimosa como a mãe, mas de cabelos negros, encaracolados e dois brilhantes olhos azuis. A menina era uma boneca!
Eu e Ruth nos tornamos amigas e até confidentes. Eu fiquei sabendo que seu marido possuía um frigorífico em Santos (se ainda não contei, a casa de Ruth ficava na Ponta da Praia) e, como ela me fazia crer, era um homem bom, trabalhador, ótimo pai.
Assim o tempo foi passando; eu noivando, Gleide namorando o deus grego e Ruth muito feliz cuidando da família e dos bordados.
Numa tarde, ao chegar com cortes de fazenda, lençóis e fronhas para serem bordados, encontrei Ruth meio ansiosa. Contou-me que seu marido andava chegando tarde e muitas vezes não vinha almoçar, coisa que estranhava porque ele sempre fora pontual.
Eu a animei: a vida está difícil, o pão-nosso de cada dia mais caro; com certeza um pai de família tem que lutar muito para sustentá-la.
Ruth sorriu, deu de ombros e passamos a escolher os riscos para os bordados. Enquanto Ruth se preocupava, Gleide vibrava! O “deus-grego” a havia pedido em casamento!
Ao comparar a situação das minhas duas amigas eu me assustei com a coincidência: enquanto uma vibrava de alegria por ter conquistado um noivo, a outra penava por sentir que o marido se afastava de casa.
Depois me perguntei onde a Marly (eu já havia dito o seu nome?) a filhinha da Ruth tinha ido buscar aqueles olhos azuis e cabelo negro, encaracolado?
Esta desconfiança se acentuou quando, no próximo encontro, Ruth me disse, já de olhos vermelhos, que o marido tinha passado a noite fora e que, ao chegar de manhã cedo, pediu-lhe que fizesse a mala dele porque deveria viajar.
- A pequena? – Perguntou esperançosa.
- Não, a grande. Vou demorar um pouco.
- E o frigorífico, com quem fica?
- Com os rapazes, ora! Por que tenho dois ajudantes? Faça a minha mala enquanto tomo um banho e depois chame a Marly que eu quero me despedir dela...
Ruth disse que o seu coração só faltava sair pela boca. O marido notou e perguntou com um meio sorriso:
- Por que estes olhos assustados? Quantas vezes eu tenho viajado?
- Mas leva sempre a mala pequena – retrucou alarmada.
- Desta vez vou demorar um pouco mais – disse e foi entrando para o banheiro.
Ruth fez a mala e foi buscar a filha que brincava na vizinha. Disse que o marido havia saído todo cheiroso do banheiro, depois todo arrumado pegou a filha nos braços, beijou-a muito exclamando:
- Papai adora você! Adora você!
- E a você? Ele beijou? – perguntei quase aflita.
- Sim, como sempre! Mas um gosto amargo ficou em minha boca. Eu queria que ele dissesse que me adorava também, que não poderia viver sem mim... Foi um beijo rápido, apressado, corrido para tomar o trem...
- Olha só! Imagina se ele vai deixar uma mulher tão linda (já mentalmente comparando-a com a “outra”) e um amor de filhinha? Sossega o coração, Ruth, ele vai voltar logo.
Dei-lhe um abraço gostoso e dali parti para o apartamento de Gleide. Nervosa, no caminho, ia me indagando: Devo avisá-la? Devo voltar e avisar a Ruth? Será que o “deus-grego” além de adúltero vai tornar-se bígamo também?
Ao chegar ao apartamento de Gleide, antes de subir, vi que o Omar não estava no açougue e, ao tocar a capainha, ninguém me atendeu.
Então desci e tornei ao açougue e perguntei pelos noivos. Os rapazes sorriram e disseram que haviam “fugidos para casar”, sem festas, sem fazer onda.
Terrivelmente acabrunhada e sentindo remorso por não ter impedido uma passível tragédia, fui para casa e passei dias sem coragem de enfrentar o sofrimento de Ruth.
A mamãe me avisou que Gleide havia voltado da lua-de-mel e, um pouco mais tarde Ruth me ligou vibrando:
- Ele voltou! Ele voltou! Venha hoje a noite conhecê-lo! Vou fazer um bolo!
Eu, feliz, mas embaraçada, sem saber como enfrentar o “deus-grego”, ofereci:
- Quer que eu lhe leve um vinho espumante?
- Ó, será ótimo!
Sai, comprei o vinho e fui, praticamente me arrastando, apavorada porque sabia que ele ia me reconhecer. Que horror!
Parei o carro e, remanchando, custei a descer. Toquei a campainha e Ruth, linda e alegre, veio me receber.
- Que bom que você chegou. Venha! Venha conhecer o meu lindo marido!
Só faltei virar e sair correndo. Mas eu também saberia fingir. Pela Ruth eu saberia fingir surpresa.
Ao entrar na sala um rapaz alto, louro, de belíssimos olhos azuis me recebeu sorrindo. Antes de apertar minha mão ele cheirou as dele e explicou:
- Eu vim do frigorífico, podem estar cheirando a peixe...
- Uffa!