Sabes, era o tempo dos frutos e do mel.
Era o tempo das cerejas e dos pássaros a bicarem nas minhas mãos.
Era o tempo de subir às cerejeiras e me vestir daquele vermelho vivo, tão vivo como o tempo dos madrigais...sabes?
Sabes como é sentir-se princesa com brincos de cereja ocasionais?
Bailavam os pingentes vermelhos pendurados nas orelhas a desafiarem o escuro dos olhos.
Sabes…era assim um tempo de folhos e rendas, e tranças com laços no cabelo.
Eu, como sabes sorria para os montes porque era primavera.
Era o tempo das urzes e das águas a correrem nas levadas.
Era também o tempo,do suco meio agreste das amoras a escoar-se pelos meus dedos.
Este era apesar de tudo um tempo sem açucenas medievais.
Era o tempo das pútegas e dos doces intemporais.
Sabes que era também o tempo dos ninhos nos beirais.
Do cantar do cuco nos pinhais
E dos corvos nos matagais ?
Estes traziam a morte nas asas e os choros nos seus arraigados "ais".
Sabes, era também o tempo do verde dos lameiros, das águas a correr pelos ribeiros e também por cima de mim.
Ai de mim a sorrir para o sino da capela, quando por sorte lhe puxava a argola agrilhoada.
Depois escapulia-me e deitava-me na erva macia a olhar os dias azuis, e os verdes, e os rosas e depois os amarelos e os lilases.
Os vermelhos eram os que mais gostava. Partilhava-os com uns ténis novos de marca...diziam serem de marca...não sei.
Eram todos os dias dos meus olhos.
Eram os que me permitiam ser céu e serra, rio e vento, chuva e maresia, sol e lua, noite e dia, e tudo o que um só corpo astral vivenciou para mim.
Era eu, naquele nevoeiro miudinho que descia da serra, sem correntes nem visões futuristas de qualquer apogeu.
Era um dia sem céu!
Era o tempo dos olhos negros…vivos tão vivos como os olhos escondidos nas folhas das oliveiras.
Mas sabes também quem eu era, tal como sei quem tu eras.
Vida cantada nas eras das pedras de xisto.
Vida desvairada nos penedos onde o vento escreveu num só segundo os nomes todos que já eram seus.
Tu e eu, ou Eu e tu, elevados ao tempo de um céu maior nos nossos olhos.
E agora, de novo as amoras nos silvados para pintarem os meus lábios.
E as cerejas, brincos esbeltos de rubi a brilharem debaixo dos meus cabelos.
E foi sempre assim apesar do vermelho dos ténis que calçaram os meus pés.
Dolores Marques