ESSA COISA
O que poderia incomodar Augusta? Aquela senhora elegante em alegre vestido floral era a própria imagem da tranquilidade... Sempre gozara de saúde perfeita e alcançara todos os sucessos que se elenca às mulheres de trinta e poucos anos. Com efeito, estudara, se formara, estudara mais, se empregara num bom cargo, viajara por lugares exóticos, conhecera as maravilhas do mundo, amara e desamara, experimentara, amara de novo, fora amada, se casara, fora mãe, trabalhara mais e melhor... Conquista então o padrão de vida que tanto desejara quando mais jovem. No entanto, estava ali, perdida. Sentia-se perdida. Perdida de não saber aonde ir. Àquela altura da vida não havia nada que não pudesse fazer. Acreditava que sua capacidade pessoal, testada repetidas vezes pelos desafios de uma vida tão produtiva, seria recompensada apenas pelo mérito. Talvez por isso, evita sempre jogos de azar, dizendo odiar qualquer coisa que não premiasse o melhor em função de probabilidades caprichosas: --"Sucesso não é sorte" -- dizia tentando se explicar a alguém -- "sim questão de treinar-se, disciplinada e motivada, tendo em vista algum objetivo concreto, fosse alcançar uma promoção no trabalho; fosse se sentir bem numa roupa nova. Enfim, sucesso é foco, ou seja, esforço bem direcionado". Augusta era, portanto, uma pessoa muito admirada, visto que, além da escuta atenta, tinha sempre uma palavra para cada ocasião, estudando as pessoas à sua volta. Buscava, assim, fazer sempre a coisa certa e seguir o melhor caminho.
Súbito, ESSA COISA... Não havia melhor caminho, pois, já não havia caminho nenhum! Era como se seus passos a tivessem levado longe demais sob a convicção fervorosa de que a felicidade era antes uma realidade a ser construída que uma paisagem a ser encontrada. Mas, enfim, edificado e habitado o seu Palácio da Grã-ventura, não desejava senão se ausentar dele e de si, desalojar-se. Surpreendia-se tendo fantasias absurdas, vivendo com o mínimo de conforto em casinhas de pau-à-pique no sopé da serra dos longes!... Ela, que mal suportava ficar só, ansiava por solidões absolutas! Em paradoxo, cercava-se de gente ao longo dia: Marido, filhos, pais, amigos, colegas, clientes, colaboradores, conhecidos... Toda uma gradação de círculos de relacionamentos, orbitando em redor de si como se satélites necessários para corrigir a sua trajetória Universo afora. Queria, apesar de tudo, ficar só. Estar só. Ouvir o som da própria voz enquanto contempla um crepúsculo ou uma efêmera nuvem branca sendo levada pelo céu. Não ver viv'alma e abandonar-se demoradamente contemplativa sobre uma pequena maravilha. Ir a algum lugar onde todas as suas conquistas e mesmo as suas qualidades não tivessem valor para ninguém além de si, exacto por não haver ninguém para valorizar o que quer fosse.
Só.
O problema é que tão logo se permitia divagar acerca de uma vida tão diferente da sua, Augusta, percebia vir dalgum lugar em sua consciência uma voz sereníssima em meio a sua tempestade interior: -- "Inútil... Tal solidão é antes uma fuga que um anseio" -- e continuava: --"Não pode haver felicidade nisso de se afastar de tudo e de todos para enxergar-se profunda e detalhadamente" e dizia mais: "Se houver, é algo de um egoísmo misantropo e assustador que aliena a gente de quanto amamos, semelhante àqueles mortos-vivos que caem pelos cantos e desconhecem os seus por mais uma dose de qualquer veneno." E concluía de si para si, pensando alto: --"Tens filhos! Amas e és amada! Estás cercada de sorte de garantias e renúncias. Que estranha sandice essa agora?"
Exausta, ela se entrega a uma honesta melancolia que tampouco consegue enxergar senão através de conveniente niilismo. Já não importa, volta para casa como se sorrisse ao encontrar cada coisa em seu devido lugar, dando lhe reconfortante sensação de segurança e estabilidade. Está tudo ali! Mais tarde, todavia, deita-se e tem sonhos confusos nos quais desastres violentos se sucedem.
* * *
Acorda. Recomeça um a um os passos de seu dia, envolta por uma atmosfera de estranhamento de si que a fazia se questionar de cada mínimo gesto seu como jamais ousara fazer. Sorri, entretanto, por reflexo condicionado de longo treinamento. Entendera que para estar bem era preciso parecer estar bem: -- "Boa aparência faz boa essência." -- repetia-se Augusta, para após ilustrar seu raciocínio com uma frase de reclame: "Como tenho andado? Impossível andar mal com "scarpins"!
E lá se ia ela... Andando com seus "scarpins". Destacava-se pelo porte hirto e passada segura enquanto se aproximava do pórtico de entrada do edifício em que trabalha. Para e mira-se por um instante no pano de vidro da fachada: "Vou causar boa impressão." E sorri, satisfeita de si mesma. Adentra o vestíbulo. Sobe pelo elevador e se dirige para sua sala cumprimentando cada rosto conhecido com uma saudação e um sorriso. Senta-se e começa a trabalhar metódica sobre a pilha de papéis que se acumulava sobre sua mesa, sendo interrompida, de quando em quando, por um colega ou outro. Analisava, comentava e despachava os documentos com a mesma face serena do início ao fim do dia. Era uma questão de tempo, contudo, e aquela conhecida angústia a dominaria lentamente. Percebendo-se, por fim, irritada sem motivo, levanta-se e vai até o banheiro. Olha-se no espelho e, de si para si, externava Augusta -- "Melhor tomar cuidado com ESSA COISA." -- sim, era algo inominável aquele sentimento -- "Senão, acabaria surtando por qualquer bobagem..."e se olhava no espelho, alternando caretas. Parecia completamente entregue ao afã de destruir essa pálida figura que sorria, quer por conveniência; quer por civilidade, a todos que encontrasse, extraindo-lhes gentileza e admiração. Mas agora, sua cabeça doía e olhos ardiam.
Sai e topa com colegas no café. Tinha ganas de chorar sem motivo, embora continuasse dando gargalhadas espalhafatosas à custa de frivolidades. Sim: foco! Sabia exactamente como devia se apresentar àquelas pessoas. Perfeita actriz de si, repetia seu texto com esforçada convicção, mais atenta à reação de seu público que ao real sentido das palavras. Há anos construíra essa personagem infinitas vezes mais interessante que ela própria, do qual seus sentimentos reais, via de regra, destoavam. Eis Augusta: Oculta sob uma máscara mantida tanto pela admiração alheia quanto pelo orgulho opressivo dos seus... Todavia, era importante mantê-los atentos à sua figura tranquilizadora: -- "Se quem sorri parece mais bonito," -- repetia-se feito mantra -- "quem faz rir parece mais inteligente". Bonita e inteligente... Qualidades que Augusta se obtinha através de belos sorrisos e boas risadas.
Volta do café e encara de novo sua pilha de papéis. Não que fosse monótono, mas aquela papelada toda não tinha fim e, às vezes, sequer sentido. Mas ela não se importava, afinal, tudo aquilo era registro e aprendizado bem remunerado! Por muitos anos ela própria pagou caro para aprender a resolver problemas como aqueles que tinha diante de si, diariamente. O trabalho não era ruim. O que realmente a incomodava era ESSA COISA que parecia se abater sobre ela feito névoa. Uma melancolia cujos sinais ela aprendera a ocultar tal como se oculta as olheiras de uma noite em claro. Pouco adiantava, porém, combater apenas os sintomas da persistente tristeza que a buscava dominar. Aprendera, após anos de análise, que para controlar suas emoções era preciso compreender seus sentimentos, mesmo que parecessem absurdos, egoístas e até perversos. Fazia tempo se que sentia assim e o esforço necessário para que ninguém percebesse era cada vez maior. Precisava entender o que estava acontecendo consigo, antes que tivesse alguma espécie de crise nervosa. Se isso acontecesse, acabou: Toda a credibilidade que adquirira após tantos anos se perderia em minutos de descontrole. Ninguém poderia saber o que se passava em sua alma, sob pena de perder tudo o que construíra.
-- "Alguma coisa precisa acontecer." -- conclui, sem muita convicção.
* * *
Augusta volta para casa. No caminho, passa pela creche e pega seus filhos: Um menino e uma menina, ainda pequenos. Alvoroçados e carinhosos, sempre a cobrem de beijos quando ela chega. É sempre muito bom. Ali ela assume o papel de mãe que, ao contrario do anterior na empresa, era quase espontâneo e passional, até porque é inútil tentar enganar crianças emocionalmente. Ela é uma mãe atenta que se diverte sincera com o universo de seus filhos, mas, por incrível que possa parecer, nem mesmo todo aquele amor puro e incondicional conseguem a animar hoje. ESSA COISA continua a lhe enevoar a realidade apesar da algazarra dos miúdos no banco de trás... Quando que se diz que ela não é totalmente espontânea é justamente por tentar não transparecer para os dois sua melancolia. Às vezes, quando além da névoa constante uma súbita escuridão a cerca, Augusta chega ficar irritadiça a ponto de repreendê-los com rispidez incomum. Ambos se assustam profundamente nessas ocasiões e se calam sem nada entender. Hoje, felizmente, não havia mais que névoa. Névoa espessa, era verdade.
O carro roda pelas ruas conhecidas do caminho. As crianças, ora discutem; ora brincam: Normal. Augusta se interessa pelas novidades do dia enquanto ambos disputam sua atenção. Ela se comove às lagrimas: "Como não podia ser feliz, sendo tão feliz?" Era uma contradição insanável a que vivia, pois, amava e era amada. Ainda assim, havia ESSA COISA...
Chegam. Entram enquanto ela dispara ordens e lhes controla o ímpeto. Pacientemente, faz com que se troquem, comam e estudem as lições. Quando o marido volta do trabalho, a casa está em harmonia, com os pequenos estudando e Augusta lendo uma revista qualquer. Ele é atencioso e a trata como um ouro achado. Nunca, mesmo passados tantos anos juntos, deixou de reconhecer e de alardear suas qualidades aos quatro cantos. Homem vivido, sabia o quanto sua mulher era especial, embora entendesse que ela se cobrava com rigor excessivo. Aprendera a lidar com esse perfeccionismo dela, inclusive, por ser o principal beneficiado. Não obstante, não deixava de se preocupar com tanta eficiência a serviço de si e de sua casa: Augusta tinha algo como uma personalidade contida que ele próprio temia conhecer um dia. Não, a pessoa com quem se casara era aquela que tinha diante de si: Uma mulher bonita e inteligente! Se havia algo mais para aflorar do subterrâneo de sua alma, com certeza era algo prejudicial. Não sabia e não queria saber.
Augusta sabia que todos sabiam, todos os seus ao menos. Ela simplesmente julgava que a imagem que forjara de si era a mais merecedora de amor que qualquer outra. A duras penas tornara-se quem era ao invés da misantropa que ansiava por ermidas. Por fim, concebera para a si a ideia de que todos, de um modo ou de outro, são infelizes. Era como se a infelicidade fizesse, a seu ver, parte da condição humana. Segundo ela, o livre arbítrio torna o ser humano forçosamente infeliz, visto que, em toda escolha que se faz, conviva com a renúncia de algo igualmente desejado ou potencialmente prazeroso. Uma mulher que fez as escolhas que ela fez, por exemplo, carrega em si o lamento pelos caminhos não trilhados. Ao sonhar com aquela solidão absoluta, ela se lembrava sim de uma vida possível e da qual renunciara para viver justamente a vida que vivia. No entanto, ela tinha certeza de que se fosse embora para lá, abandonado esposo, filhos e carreira, tampouco seria feliz. Lá, a ansiada solidão se revelaria tédio; a bela natureza selvagem, opressiva; e o tão desejado silêncio, vazio... O que quer que fizesse da vida, conviveria com o remorso pelo que jamais fora, tal como uma mulher a recordar o aborto de um filho e, com ele, toda uma vida que poderia ter sido. Isto era ESSA COISA, ou seja, esse desejo natimorto pelo que jamais seria e que, no entanto, lhe povoava a alma.
Augusta olhou o esposo através da escuridão: -- "Eu te amo." -- disse, profundamente comovida e certa de que ele não escutaria. Ouviu a respiração dos filhos em seus quartos e sorriu: ESSA COISA agora tinha nome. Sim, era saudade de quem ela podia ter sido.
E dormiu, pronta para um sono entremeado de desastres confusos e aceitando um pouco melhor a névoa do novo dia.
Betim - 01 11 2014
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.