Poemas : 

É menos difícil ser flor

 
Até toda a flor velha que o tempo despreza
Poderá um dia resgatar do jarro a sua beleza
E com o arrastado fulgor do viscosa floema,
Selará no seu caminho um espantoso tema.

Por aqui julgo eu com desditoso desdém
Abominar os meus passos por sabê-los aquém
E nem por isso encontro um mais certo prumo
Que faça de mim homem, arte, graça e rumo.

Mas a sujeira do ar que à força de ser poeira
Tão bem recobre as ajudas de complacente cegueira.
Entranha-se o engano no pavilhão do meu ouvido
Com o faustoso diploma de um curso sem sentido.

Atravessei sempre às cegas os caminhos importantes
E as minhas convenções, por certo, beligerantes
Atascaram na desorientação, em esperança pecaminosa,
Os belos dias daqueles que aceitaram minha rosa.

Porém a mim próprio também eu feri certeiro
Como o inocente animal que se coça em cativeiro
E adiantei à dor um espantoso grito
Que aqui assim cantado não parece tão aflito.

Num transe inconsciente, em espontânea sessão
Caiu de borco, desamparada, a minha certa razão.
Uma tenaz vontade feriu minha carne passageira
E logo algum purpuro sangue foi libado à minha beira.

Estava agora em densa selva, sem vestígios de metais
Vários cacos de cerâmica ali se faziam reais
Vivaz máscara assimétrica ao meu rosto prometia
Fazer jorrar todo o sangue que ainda em mim corria.

Até um chefe tribal eu podia então tolerar
Uma língua morta a falar, uma voz gutural a cantar,
Então um grito, vagido bem animal, despertou logo os sentidos
E vi uma árvore rara e seus frutos não comidos.

Maravilhado em tão espantosa exceção, derivei,
Enleado por uma nova promessa, como se fosse rei
Imaginei um altar no sol intermitente desta peça
E num batismo de mil seivas, meu coração andou depressa.

Porém, pouco depois, o crepúsculo já se anichara
No velho mundo do conceito e da tola ideia avara
As exigências da noite próxima faziam já seu murmúrio
Escudadas em tradições dos que escrevem todo o augúrio.

Por sorte adormeço bem, assim em suave levada
Mas logo assoma um barco aflito em sua capital jornada
É pesadelo agitado que eleva as vagas aos argonautas
Já então estes gritam palavras roucas de incautas.

Línguas de Babel pois só seus olhares entende o peito
Lançam chispas obstinadas num cirandar contrafeito
Surge a espuma enluarada como rosto acusatório
Canta os Fados do destino, com acordes de velório.

A embarcação já vencida, singra bem longe da gente
Clamores e braços traduzem um medo forte e presente
Tanto que a solitária agonia e a luz vertical que a secunda
Iluminam e aquecem a parte da alma mais funda.

Cada homem sente-se só, com absoluta indiferença
Pelos náufragos vizinhos dessa boca de inclemência
Meu corpo partilha, ele próprio, de tão caloroso festival
E a rúbrica definitiva, descobre o meu código postal

Tal tormento terminou quando me dei em pensar
Nos meus que cá ficariam sem meu corpo para velar
Assim a dor física deixou-me, mas ao mesmo tempo agora,
São amargos os lamentos que se servem nesta hora.

Mas o que vem a ser isto?! Tal enredo é falaz!
Sem pais, irmãos, nem mulher, não tenho rapariga ou rapaz
O pai do sonho era outro, um refugiado qualquer
Que pela tarifa do barco, pagou um eterno aluguer

Convém lembrar afinal que estou em espiritual retiro
Em selva com gente diferente e muito dada ao suspiro
São um povo primitivo, que não dissimula no banho
Quando muito pela caça, fazem seus truques de antanho.

Serei também refugiado, um dos que marcha, clandestino,
Na rota mais tormentosa do esquecimento vespertino
Cenários tão moribundos em dias certos e fecundos
Fazem-me pagão completo, mas psicólogo dos segundos.

Penso e sofro a civilização, as ideias hipócritas, a água salgada…
Como um néscio, que acredita no acordar de todos de enfiada
A um tempo só renego e recomendo os suplicantes
Sofro a razão do batuque, pátria eterna dos semblantes

Relembro os campos de trigo e seus corvos em altas notas
Uma nostalgia serena sai do olhar das minhas botas
Lamento não ter o talento desse tal ruivo holandês
Falta-me ainda coragem para fazer o que ele fez.

 
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fcsguimaraes
 
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