- A distracção deu-me felicidade por momentos... por momentos não pensei em nenhum futuro.
Lídia passava os dias a pensar no seu dia seguinte. Sofria de algo que, os médicos, diziam não saber bem o que é mas que lhe estava a consumir o corpo de forma muito rápida e não lhe deixava mexer um músculo, que fosse, abaixo dos ombros. Não iria, melhor, não queria estar muito mais tempo entre os mortais e, no entanto, desconfiava que não existiam imortais. A outra vida, que durante todo este tempo lhe havia sido prometida pelo padre da aldeia, cada vez mais se parecia com as histórias que se contam às crianças para as enganar enquanto se lhes enfia uma colher de sopa pela goela dentro.
Quarenta e três anos feitos em Março, a abrir a primavera. Ainda no ano passado, por esta altura não tinha nada, mexia-se a torto e a direito nos afazeres da quinta... e daí... se calhar até tinha, de certeza que tinha mas não sabia.
Também nunca foi muito de ir ao médico. Lá entendia que era tempo perdido e sempre achou que era como visitar uma loja onde se vendem doenças, uma loja em que todos eram charlatães faziam empréstimos de saúde. Era ideia que lhe vinha da avó, velha de uma rijeza a toda a prova.
- Ah que coisa! Porquê eu? Porquê assim? - ... eram sempre os mesmos "porquês". Depois de saber, depois de começar a saber que estava quase no fim, era assim todos os dias - Só quero que isto acabe de uma vez! Se é para morrer, que seja já!
E logo...
- Ai credo! Que o diabo seja cego, surdo e mudo! - num exorcismo de trazer por casa, alguém exclamava enquanto procurava por algo feito de madeira para lhe bater um terno de vezes com os nós dos dedos.
- O diabo? Que se lixe o diabo! Que morra eu aqui e agora! Que se lixe o diabo! Se isto é obra de deus, que venha o diabo! – o tom ríspido e quase mal educado, gerou... silêncio! Um parágrafo fechado e enorme e um silêncio desconfortável. Toda a gente, naquele quarto, olhou para o chão e, só Lídia olhou para toda a gente com os olhos líquidos de medo e raiva sublinhados pelo queixo que tremia incontrolável.
Era difícil entender como é que as boas intenções podiam ser tão desumanas, como é que os sentimentos de misericórdia, desejos de vida longa e piedade podiam ser tão agressivos e fazer tanto mal. Lídia só queria que todos compreendessem que estar viva era um tormento maior que qualquer morte... devia ser esta, talvez, a única vez que desejou algo para si e não lho queriam dar.
Que sentimento de impotência! A incapacidade que a doença lhe oferecia, tirava-lhe qualquer hipótese de autonomia. Quarenta e três anos e punham-lhe fraldas, limpavam-lhe o rabo e mexiam-lhe em todo o lado sem que ela pudesse fazer nada... em quarenta e três anos tivera muitas vezes medo mas, só medo. Agora sentia um misto corrosivo de humilhação e terror. O pior de tudo é que o cérebro funcionava. Ela ouvia, via, cheirava, pensava e até sentia. As pessoas não percebiam que isso era a forma mais insana de tortura que se podia imaginar.
No aparelho de televisão que lhe haviam posto aos pés da cama para a distrair, era hora de noticiário. As notícias do costume. Um atentado no Iraque causou trinta mortos. Uma criança foi encontrada morta depois de violentada pelo tio. Num banco conhecido foi feito um desfalque e três gestores fugiram para as Maldivas. Na interpelação mensal ao governo houve troca de ofensas entre o líder da oposição e o primeiro ministro. A eutanásia foi discutida e considerada imoral e ilegal pela igreja e por vários sectores da vida pública nacional.
Lídia olhou para o relógio que se estava na parede. Fixou-o. O ponteiro dos segundos girava candenciado... tictictictictictictic. O ponteiro dos minutos respondia-lhe a espaços. O outro demorava sempre mais.
Lacrimejou em silêncio e pensou o mais alto que conseguiu... “matem-me”.
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.