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Ensaio de conto /romance /ou coisa assim

 
Parte I

Levantei-me discretamente, ajeitei a saia, fechei calmamente os botões do casaco, cheguei a cadeira para junto da mesa, peguei na bolsa, passei as mãos pelo cabelo, deitei-lhe um último olhar, esbocei um sorriso cordial e disse serenamente:

- Obrigada pelo café. Adeus e até nunca mais.

Sai para a rua... Fechei os olhos... Senti o vento na cara... sorri...e segui serenamente pela alameda rodeada de árvores frondosas. Levava na cara um sorriso e na cabeça um tumulto de pensamentos e sensações que oscilavam entre o engraçado, o orgulho e o incrédulo. Noutros tempos viria de consciência pesada por ter tido a lata de deixar a criatura especada na esplanada... Mas hoje não, hoje sentia-me bem, poderosa e senhora de mim... Queria lá saber do politicamente correcto e do socialmente bem visto.

O toque do telemóvel interrompeu-me os pensamentos... Sentei-me num dos bancos do jardim, inspirei, retirei o telemóvel da bolsa...Margarida... Ui, agora é que as coisas iam ficar divertidas, pensei, enquanto atendia com um:

- Olá Guida! Então que tens para me contar?

- Olá Sarita, então querida está tudo bem?

- Sim... está tudo maravilhoso - respondi com um sorriso, enquanto na verdade soltava uma gargalhada mental.

- Ai sim? Então e que tal estão as coisas?

- Óptimas! está tudo maravilhoso! - respondi

- E então que tal está a correr o café com o Júlio? - perguntou com aquele tom safado que tão bem lhe conheço.

- Oh minha querida... maravilhoso!

- A sério? Eu sabia que se iam entender!

- Claro, claro... oh querida desculpa mas foram os vinte minutos mais penosos da história dos encontros.

- O quê? - Perguntou-me ela com ar incrédulo, como se lhe estivesse a dar uma notícia terrível.

- Guidinha, Guidinha... tu és uma querida mas o teu amigo torra a paciência a um santo... o café estava óptimo mas para a próxima eu escolho a companhia, ok?

- Mas... não correu bem?

E ela insiste... como é que lhe vou dizer que o amigo dela é um narcisista idiota que passou vinte minutos a discorrer sobre si mesmo e sobre a sua vida maravilhosa e as suas mil e quatrocentas qualidades? Pois... lá teria de ser... teria de ser curta e grossa... coitada da Guida. No fundo ela só quer o meu bem, quer ver-me feliz... mas não percebeu ainda que o que a faz feliz a ela não me basta.

- Guida... correu bem... o teu amigo é um idiota de fato e gravata, que acha que o mundo gira à volta dele e que está a fazer um favor à humanidade por existir. Por isso ao fim de uns longos vinte minutos de educação... Vim-me embora. Não tenho paciência... já me devias conhecer melhor, mas olha depois falamos ok? Está uma tarde maravilhosa e não me apetece estragar o meu bom humor. Não fiques triste, depois ligo-te.Beijinhos.


Ai, ai... pobre Guida... Ainda não percebeu que estar sozinha não é o mesmo que estar só, ainda não percebeu que suficiente não basta, que quero mais do que uma simples companhia... Se fosse esse o caso tinha arranjado um animal de estimação.

Será assim tão difícil entender que o facto de as pessoas estarem sozinhas não significa que estejam desesperadas e dispostas a aceitar qualquer coisa, a aturar qualquer idiota nem tão pouco a contentar-se com um dos Júlios desta vida que falam mais deles próprios do que eu falo de mim mesma?


Ai Guida, Guida... Se tu soubesses que no fundo procuro aquilo que todas procuramos: aquele olhar que nos enche o estômago de borboletas, aquele abraço que nos tira os pés do chão, aquele sorriso que nos incendeia a alma e aquela voz com quem mantemos uma conversa de horas e horas. Ai Guida, Guida... Se tu soubesses como é simples o que eu procuro.

Mas não sabes e não te condeno por isso, na verdade nunca te expliquei, nunca falámos sobre isso… Agora que penso nisso somos amigas há tantos anos e nunca falámos sobre tanta coisa. Ainda assim achas que me conheces melhor do que eu mesma, continuas a achar que a minha vida é um mar de rosas porque nalgum ponto da minha vida, talvez de forma inconsciente optei por seguir um rumo diferente do que era esperado de mim: estudar, trabalhar, casar, ser uma esposa prendada e submissa, ter filhos e ser uma mãe maravilhosa. Dizes vezes sem conta que invejas a minha liberdade mas dizes outras tantas vezes que não serias capaz de viver assim… o que raio é viver assim? Até parece que sou uma freira em regime de clausura ou um eremita escondido do mundo na sua caverna.

Ai Guida! Pará de me tentar arranjar uma companhia, pára de me tentar impingir os teus amigos, os amigos dos teus amigos e afins, pára de me tentar impingir como se fosse uma mercadoria danificada ou um artigo descontinuado que se vende mais barato. Amiga do coração vê se percebes: eu não estou nem aí! Não procuro um príncipe encantado num cavalo branco, nem quero saber de riqueza, de bens, de família, de berço, de estatuto, de luxo, viagens, conforto, de beleza, de fatos e gravatas, status e afins… não quero nem saber! O que eu procuro não está à vista desarmada, o que eu procuro está escondido na profundidade de um olhar, na suavidade de um toque, na gentileza de um sorriso… o que eu procuro não se vê, apenas se sente.

Bolas Guida! Olha a conversa que acabei de ter contigo… embora tenha sido apenas na minha cabeça, embora continue sentada no mesmo banco de jardim onde atendi a tua chamada, embora me continue a sentir orgulhosa de mim mesma por ter tido a coragem, que tantas vezes me falta, de fazer o que quero sem pensar se estou a magoar alguém.

Olho para o relógio… caramba estou aqui há quase uma hora. Mas não me apetece ir para casa… está uma tarde deliciosa e eu estou tão bem disposta que me apetece respirar. Levanto-me…e sigo pela alameda… sinto debaixo dos pés o estalar das folhas secas que o vento foi arrastando e sinto vontade de saltar a pés junto para as pequenas poças que a chuva dos últimos dias formou, mas contenho-me…a custo… mas contenho. Entro no carro…e em poucos segundos volto a sair: que se lixe, hoje vou fazer o que me apetece! Saio, tranco as portas, atravesso calmamente o jardim, dirijo-me aquela explanada onde ando há meses para ir, sento-me tranquilamente e olho em redor: belo fim de tarde, sim senhor.

- Olá boa tarde! Então o que vai ser? – Pergunta-me uma voz jovem e sorridente.

- Olá boa tarde! Então vai ser um café cheio e um pastel de nata… com canela se faz favor.

- Com certeza. É só um segundo.

E naquele segundo… naquele breve segundo: a vida é bela, o mundo maravilhoso e eu sinto que renasci, sinto que dentro de mim se deu uma guerra civil, sinto que nada será como antes, sinto que quero, que preciso e que vou viver a vida. Sim… mas como eu quero e porque eu quero, não como querem que eu a viva. Porque a vida vale a pena e só a vive quem pode…e acabei de decidir que eu posso!

E heis que o um sinal sonoro me informa que acabo de receber uma mensagem… mas quem será agora? Justamente agora que o pastel de nata me estava a saber tão bem. Abro a capa, carrego no botão… Indicação de nova mensagem, remetente Júlio… a sério? Humm… não estou nem aí… distraidamente carrego no apagar e nem me dou ao trabalho de ler. Escusam de estar aí com essa cara a julgar-me… se a alminha quisesse dizer-me alguma coisa de relevante tinha aproveitado a ocasião em lugar de ter aproveitado para se auto-elogiar. Não me apetece perder tempo com coisas que não levam a lado nenhum.

Mentalmente já estou a imaginar que em breve Margarida Sofia me vai ligar a questionar porque raio não respondi à mensagem do amigo… lá terei de lhe explicar que não me apetece perder tempo com pessoas sem interesse nem conteúdo. Mas isso, são outros quinhentos… neste momento o que me importa é terminar este belo lanche, aproveitar esta bela tarde e esquecer tudo o resto.

E lentamente levanto-me, faço serenamente o caminho de volta ao carro, entro e num segundo estou de volta a casa. Chego com a alma lavada, fresca, animada, positiva… se eu soubesse que ser politicamente incorrecta era tão bom teria certamente começado mais cedo. Mas nunca é tarde para mudar, para querer, para crescer e sobretudo para viver.


HP/

 
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Hisalena
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