Confesso não me recordar sequer porque razão, naquele dia, optei por usar o autocarro no regresso a casa. Regra geral o percurso entre Lisboa e a minha residência era feito em viatura própria, maugrado as intermináveis filas, quer dentro da cidade, quer no auto-estrada.
Carregada de livros, portátil e mala ao ombro, amaldiçoei não ser capaz de me auto-regular de forma a transportar o estritamente necessário. Mas não, acabava sempre por me carregar indevidamente, o que, em horas de ponta, especialmente no metro, me catapultava para as margens da incerteza: seria capaz de dar conta de tanta coisa? Um abanão e cairia desamparada (ou amparada nas multidões), um safanão e lá se ia o meu preciso bem: o meu computador, onde dormia a minha vida inteira … Claro que devia fazer backup’s, mas ia sempre adiando para o dia seguinte. Mais ainda: as pens recentemente adquiridas, onde andavam alguns dos meus trabalhos (profissionais e afins), estavam igualmente na bolsa externa … Ridículo! A minha vida inteira, ali à mão de semear. Desprotegida!
Varrida por estes pensamentos consegui atravessar a multidão. Entrei no autocarro, já de motores em marcha. Finalmente sentia-me segura. Agora esperavam-me cerca de 45 minutos em que fecharia os olhos, depositaria bagagens no banco a meu lado, colocaria fones e o mundo lá fora haveria de correr sem mim…
Entrei no autocarro, como dizia. Procurei lugares vazios (dois). Mas não. Naquele dia, tal como eu, parecia que o mundo inteiro decidira deixar o carro em casa. Com os olhos feridos da claridade da rua mal conseguia destrinçar vultos. Avancei tacteando no corredor em penumbra. Na sua maioria, as janelas estavam cerradas pelas cortinas. Equilibrava pastas em desespero de, e o mais rapidamente possível, me conseguir sentar. O autocarro já em movimento, avançava. Repentinamente, senti um valente puxão pela alça do computador. Naquele momento, só pensei: “Bolas, será que é desta? Vou ser roubada aqui dentro??? Porra …”
- Estava a ver-te desde que atravessaste a passadeira … já não te via há séculos mas reconheci-te de imediato… senta-te, vá! Dá cá metade dessa tralha…
A voz era-me familiar. Cordial, acolhedora. Instintivamente esfreguei os olhos, como se conseguisse ver melhor depois…
- Não te lembras de mim? És a Márcia, não és?...
- Sim, claro… desculpa … claro que me lembro! Armanda, és a Armanda …
Sorriu. O rosto estava envelhecido, os olhos brilhavam pouco, mas continuava uma mulher muito bonita…
- Armanda … Que fazes aqui?
- Mais ao menos o mesmo que tu, presumo. Trabalho!
Sorrimos. Sim. Claro, trabalhávamos ambas….
Começaram as perguntas mútuas, afinal desde o nosso último encontro haviam decorrido mais de vinte anos. Uma vida inteira …
Conheci a Maria Armanda quando frequentava o 12ª ano, já em regime nocturno. Mais velha e casada, (bem casada) chegava à escola sempre num belíssimo carro, vestia-se bem, tinha um porte altivo, uma excelente figura. Não passava despercebida. Casada com um quadro superior de uma empresa, natural do interior, decidira, tal como eu, dar continuidade aos estudos. Não porque tencionasse exercer qualquer profissão (dizia que a sua profissão era esposa), mas porque reconhecia a necessidade de não deixar que o fosso cultural entre ela e o marido se avultasse. Queria estar à altura do papel a que se propusera: “não o quero deixar mal…”
Enquanto a olhava, recordava as nossas conversas desse tempo. Não pretendia trabalhar mas trabalhava…
- Sim, Márcia, trabalho … a vida dá tantas voltas, não é? Casaste?...
Falei-lhe de mim: - “Sim casei, tenho três filhos …”
- Continuaste a estudar? …
- Sim, não de imediato, mas sim… formei-me em Geografia, dou aulas, ou melhor, amiga… vendo, que não estamos em tempo de dar nada ... e tu?
Maria Armanda baixou os olhos. Quando os levantou em busca dos meus, um mar nublado de lágrimas varriam-lhe o olhar. Arrependi-me de imediato da pergunta.
- Desculpa… desculpa …
- Não faz mal, preciso de falar. Temos tempo…queres ouvir a minha história?
Não sabia que dizer. Afinal entre nós estavam muitos anos. Não a conhecia já e ela também não me conhecia, se é que alguém conhece alguém alguma vez. Todavia o timbre da voz era de súplica. De quem necessitava revelar-se… mostrar-se, desnuda.
- … se desejares contar … dispõe, conta.
Agarrou-me fortemente o braço. Os dedos crespos magoaram-me a pele. Começou:
- O meu casamento durou quinze anos, as minhas filhas ainda eram adolescentes quanto tudo terminou. Um dia o meu marido disse-me que ia sair de casa, que estava farto … Farto de quê? As explicações eram vagas, inconclusivas. Farto da rotina, farto de prisões, dizia. Descobri-lhe razões mais objectivas: tinha uma amante. Uma colega de trabalho, com quem viajava regularmente para o estrangeiro. Uma engenheira da empresa. Fiquei sozinha e com mais de trinta e cinco anos. Não sabia fazer nada, nunca tinha trabalhado, sabes? Depois do 12º ano, Frederico não me deixou continuar: “Estudar mais? Para quê? Nunca te irás empregar. O teu trabalho é aqui em casa…”.
Quando me vi sozinha, no início, foi o desespero. Com ele, muitas das mordomias se me acabavam. Claro que me era devida uma pensão, mas a minha vida parecia desmoronar-se como um castelo de cartas. Muitas das viagens, muitos dos jantares, muitos (ou quase todos) dos amigos, derivavam dele. Uma vez separados, via-me isolada e sozinha. Comecei a procurar trabalho. Respondia a todos os anúncios, mas a idade e a falta de experiência eram sempre factores de exclusão imediata. Finalmente, há cerca de cinco anos, dois depois de me ter separado, consegui o meu primeiro trabalho numa Clínica, como recepcionista. Ai conheci o Joel. Era lá cliente. Não te vou dizer que foi amor à primeira vista, porque não foi. No início nem simpatizava muito com ele. Mas a atenção constante, o sorriso franco, acabou por me conquistar. As minhas filhas já estavam na universidade (ambas fora de Lisboa) e estava literalmente sozinha. Começámos a sair juntos. Joel era o mais carinhoso dos homens, o maior amigo. Com ele visitei tudo o que era museu, tudo o que era galeria de arte, tudo o que era jardim… O belo e o estético eram o seu mundo (e passaram a ser o meu). Se ia à modista (sempre tive esta mania de alterar o que compro feito, ainda te lembra?...), acompanhava-me. Se ia ao cabeleireiro esperava-me à porta. Acabei por aceitar que viesse viver em minha casa (não sem que antes me tivesse questionado mil vezes se seria o mais certo, se daria certo). Iríamos arriscar. Joel era solteiro, tinha quase cinquenta anos, muitos deles vividos no estrangeiro. Na verdade, pouco ou nada falava desses tempos…
Começámos a viver juntos. Era o melhor companheiro que uma mulher pode desejar. Cobria-me de atenções, entendes? Nos fins-de-semana em que não saíamos era frequente acordar-me com o tabuleiro de pequeno almoço… a que se seguia uma manhã de mimos… Depois, amiga, almoço num restaurante perto do mar … Belos tempos, sabes? Vivi com ele o que nunca antes havia vivido com meu marido, em todos os aspectos. Todas as experiências…
Olhava-a sem saber que pensar. Teria morrido? Não dizia coisa alguma… ouvia apenas. Maria Armanda olhava agora a janela, o olhar parado na noite a cair lá fora lentamente. Lentamente progredia:
- Acabou! Acabou. Tudo acaba. Um dia, Márcia, a máquina de lavar loiça avariou. Joel fez questão de ser ele a arranjar um técnico. Não estranhei, era normal que sempre me tentasse poupar a todos e quaisquer constrangimentos. Deixei a seu cargo. Nem pensei mais no assunto – ele suprimia a máquina, lavando a loiça diariamente.
Num Domingo ainda cedo, tocaram-nos à campainha. Espreitei. Era um indivíduo que não conhecia. Não abri. Pelo ralo vi que usava o telemóvel. Ao mesmo tempo ouvi o do Joel a tocar no nosso quarto e, em simultâneo este a dizer-me de lá: “… deixa, querida. É o técnico para reparar a máquina … eu atendo, podes voltar para a cama, amor …”. Voltei. Joel beijou-me, vestiu um roupão e foi abrir a porta. Dirigiram-se ambos à cozinha. Virei-me para o outro lado, devo ter adormecido. Acordei sobressaltada era quase meio-dia. “bolas… meio-dia, estou atrasada”. Tínhamos combinado ir visitar uns amigos e juntos irmos almoçar à Costa. Descalça atravessei o hall. Descalça e semi-nua. Por momentos nem me ocorreu que não estávamos sozinhos em casa, acreditas?..
O silêncio era agora total. Armanda agarrava-me a mão com uma força estranha. Olhava-me como se o mundo estivesse prestes a acabar. O seu mundo…
- entendes?
- … claro. Tinhas adormecido, é normal que nem te ocorresse tal coisa. O Joel zangou-se de andares naquele estado, foi?...
- não …
- não? Então?...
Maria Armanda mordia lábios, sustinhas lágrimas, mas elas não se sustinham. Rolavam silenciosas. Tremia…
- ….pelo vidro fosco da porta da cozinha (estava semiaberta), consegui vislumbrar dois vultos. Parei. Eles nem deram por mim. Parei, não: estanquei, colada ao mármore do hall. Dois vultos, Márcia… abraçados. Não podia acreditar. Não podia. O roupão do Joel estava tombado no chão … Um vómito veio-me à boca, enchendo-me de um fel que não conhecia… nem no dia em que soube da traição do meu marido. Nem nesse dia! A dor era muito maior, muito maior, amiga. Traída de novo. Na minha própria casa, e desta vez por um homem. Joel fazia sexo (amor disse-me depois …) com um homem, na minha cozinha, enquanto eu dormia. Surreal. Não me estava a acontecer… não podia estar a acontecer!
- que fizeste?
Abraçava-a agora, sem saber que dizer, que fazer, que lhe dizer.
- Voltei para o quarto. Esperei que o outro saísse. Joel por fim veio acordar-me com o seu sorriso rasgado:
“Querida, acorda… olha, tens aqui um sumo … bebe, já é tão tarde…”.
Não, não lhe mandei o sumo à cara. Não, Márcia, sou, sempre fui, civilizada. Levantei-me, dirigi-me ao roupeiro, retirei a mala maior e comecei a enche-la com as roupas dele… “…que fazes? Que foi, querida?...” A face dele começou a alterar-se. Desatou a chorar, parecia uma criança. Não escondeu, apenas lamentou não se ter controlado ali em minha casa. Eram amantes há anos. Amava-o … mas também me amava a mim! Amava ambos, que não duvidasse nunca.
Não, Márcia, não consegui suportar. Separámo-nos nesse dia mesmo. Ainda tentou que reatássemos, disse-me que acabaria a relação com o Andrade (assim se chamava). Não consegui suportar a ideia de que era traída por um homem… Vivo agora de novo sozinha. A diferença é que agora trabalho. E faz toda a diferença, sabes?... Mas as saudades são tantas. Tantas …
Apenas o trabalho me ocupa. Sigo em frente. Talvez um dia volte a amar…
- Claro que sim! Claro que sim …
Naquele momento desejei dizer-lhe que a traição não se pode classificar por género. Não se deve classificar por género. Ou existe ou não existe. E se existe, há que tentar apurar razões, perceber das razões… Todavia não fui capaz de tecer qualquer comentário. Em boa verdade, creio que apenas se queria ouvir em “alta voz”. Libertar uma história que a atormentava…
A paragem de minha amiga aproximava-se. Mudamos de assunto… Banalidades. Maria Armanda parecia ter-se livrado realmente de um fardo. Beijámo-nos afectuosamente. Saiu. Da rua ainda me disse adeus …
Soube há dias que voltou a viver com o seu primeiro marido. Que foram residir no interior do país de onde são originários, que voltou à Faculdade. A vida é e será sempre uma Caixa de Pandora.
in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados
MT.ATENÇÃO:CÓPIAS TOTAIS OU PARCIAIS EM BLOGS OU AFINS SÓ C/AUTORIZAÇÃO EXPRESSA