Tudo bem. Você não vai acreditar, mas com certeza era um trabalho para os anjos. Não daqueles que vêm à noite, às vezes num voo charter preocupando o copiloto sobre a pressão do pneu do trem de aterrissagem. Preocupações mundanas essas. Não deve atinar. Tente ser alegre o dia todo enquanto o pensamento voa para longe... Creia que muitos anjos tiveram as asas removidas para que servissem num box de chuveiro. Para poderem banhar-se esfregando a poeira, lavando cuidadosamente com esponja embebida em sabonete líquido de alfazemas.
Certo que após o banho, com direito a condicionador nos cabelos, podem sentar-se na cadeira da cozinha e em silêncio contemplaram a paisagem através das cortinas xadrez. Se ainda for de manhã, talvez possam endireitar o pouco das asas que restou e tentar um sobrevoo. Não sem lágrimas, por que os anjos também choram à noite lágrimas de tristeza por lembrarem que não podem mais voar até o mar agora que o inverno chega.
O mundo não vai permanecer dormindo como imperador do reino eterno sob palmas dos bonecos de neve com narizes de beterrabas. Por isso ficarei em silêncio olhando através dos cílios procurando alcançar o horizonte distante. Tentando em vão perceber a linha onde o céu e o mar se funde. Lá haverá um picadeiro e as padarias estarão produzindo sonhos frescos para alimentarmos as gaivotas e assistirmos o por do sol debaixo de um guarda chuva fechado.
Como Fernões e Capelos, seguimos conquistando o vento através das pranchas de Wind surf, desde o chão, alçando voo como pássaro ferido. Em nós, a incapacidade de voar elimina as possibilidades de ruptura com costumes ancestrais. Um lote pouco invejável para se ter como herança, mas todos nós estávamos lá para ter um pouco de medo. Levamos as incertezas para o mar e o mundo não desapareceu. Como cegos tateando as frestas das rochas cobertas com tampos de vidro polido. Gaivotas vão nos levar com elas e não estaremos mais sozinhos cumprindo a promessa de ficar para sempre.
Sem alternativa, resta sorrir e esconder os olhares carinhosos do calor do sol protegendo a pele queimada. Nesse momento entendo perfeitamente que o inverno não será capaz de nos separar, o mar é interminável e nós nunca iremos morrer.