Contos : 

David e Golias *

 
Quero um charro, voar sobre o eco vadio e vadiar como um glaciar. Quando não estás por aqui e nem sabes onde está o mundo é mais fácil ligares a televisão e não ouvires o que te chega do outro lado. Penso se existo e logo me calo porque não sei se existo e a existência se resume à necessidade de vida. Há vida? Quero ser um glaciar! Poucas são as palavras que ainda me consigo ouvir a dizer, a voz que parte o espaço e o tempo é uma miséria. Quero um charro que abafe de uma vez esta tristeza, que apague este cheiro a alcóol. Fazes minhas as palavras que não entendo. Eu sou muito mas pela anestesia do ser pensante que ao ócio se entrega deleitosamente por preguiça. Sim, sou uma merda. Quero um charro. Duas baforadas só para ti e continuo. És uma merda também. Areia do mesmo saco. Barro do mesmo pote. A tua gravata não te melhora a retórica. Não importa o quanto com ela esganes a tua garganta. E a tua voz. É quase pena o que sinto deste cenário e de nós figurantes. Dá-me para retumbar na auto-mutilação espiritual.
Sabes o que penso da tua gravata prateada sob o fato negro? Miséria! Queres um charro também? Precisas de ouvir as calamidades que dizes, liga a televisão. Abafa o tempo que é teu por preguiça ou ócio a merda que for. Se quiseres apago as tuas pegadas pelo mundo não quero que restem dúvidas. Se quiseres, és um glaciar. Perfuma agora a tua raiva com um cheiro a verdade a rondar a distância. Sabes o que é a verdade? és um mendigo! Sabes o que eu sou? Um rei que quer um charro! Partilhamos? Duvido. Não partilho nada com quem arranca. Valeu pela temporária tentativa de sucumbir à altivez da tua poderosa negra magnificência. Mas eu sou o fraco do tabuleiro. Infelizmente não me posso reconduzir ás mesmas histórias de sempre. À mesma música que passa na rádio. Nem ao cicerone propagandista da novela das 5. O meu fumo é o meu reino. As minhas putas a que chamo sentimentos vão-se vendendo por pouco mas sem nunca se dar a ninguém. Por outras palavras: eu sou problema meu. Não das multinacionais. Pintamos a mesma tela mas com cores diferentes, eu pinto-a com os pés descalços e tu com uns sapatos de verniz quaisquer comprados numa loja de requinte. Julgaste requintado? Julgaste sabedor? Que sabes tu da vida afinal? Sou eu o Ulisses e tu és um suporte partido de toda a minha magnitude e força. És um vulto pertinente do que nunca foras, julgaste ser porque espalhas a verdade pela tua voz supérfula e eu com os pés descalços balanço nos braços da vida, os meus braços estão aquecidos pela minha verdade e os teus? Aquecidos pela tua mentira. Olha-te o reflexo nos charcos onde bebo? Qu'é de ti afinal? Qu'é da tua triste vida? Perdeste-a num jogo de poker onde achaste que não tinhas nada a perder. Só a gravata te faltava pôr na mesa, sabe-lo bem. A racionalidade é a tua mão favorita, sabemo-lo bem também, mas na hora da verdade, eu consigo fazer dela muito mais minha do que tu. Sou se quiser, na análise um glaciar mais frio do que aquele que tu és em vida. Mas ainda é a emoção que caminha os meus passos. Ainda sou eu que fumo a droga, não a droga que me fuma a mim. Não deixo ainda a vida passar-me ao lado em nome do grandioso nome de uma garrafa de whisky velho com muito alcóol, pelo seu colateral efeito de libertação.
Sabes o qu'é da minha vida? É tudo! Ainda sou eu que traço o meu rumo, balanço os meus pés descalços na verdade que tu choraste. E tu choras? Acredito que não chores: a emoção já te não ocupa o corpo nem os espaços em volta e o resto? A tua existência resume-se à ínfima verdade absurda... Ainda há verdade? Já gastaste tudo! Até o teu nome já está gasto nas esquinas do que pensas ser, o que de ti fica é a incorrecta persistência em querer ser algo mais que não o que a ti pertence. Fica-te pouco nas mãos, no final de contas. Bem vistas as coisas tens ainda menos do que eu, que tenho o meu lazer psicotrópico e a minha luxúria ocasional. Tal dá-me tempo para ser livre. As tuas letras bancárias não são senão empréstimos. Que sabes que terás de pagar e para os quais terás de pedir mais empréstimos. É um ciclo. É um jogo. Viciante e viciado. Quem é o drogado da história, então? Devias fumar do meu charro e menos do teu tabaco
Estou estoirado pelas balas que me lanças, no fim de contas fazem ricochete em mim e é a ti que matam. Queres partilhar o meu charro pá? Afinal qu'é da tua vida? Afinal qu'é dos teus limites? És um pobre descalço neste chão de renúncias que criaste. Vê lá onde pões os pés tens os pregos que te pregarão na cruz espalhados pelo teu chão. são tantos! Aqui não há espaço para os teus queixumes de rico desgraçado, não há espaço para filhinhos da mãe, só há espaço para filhos da puta.
Fumas?
Sangrarás por redenção com os pregos do teu ódio que te prendem ao chão. Rezarás e desperarás por uma coroa de espinhos que te faça rei. E senhor. Implorarás aos espectadores, inclusive para ressuscitar ao 3º dia a fim de poderem votar em ti para umas próxima eleições. Vale tudo, tudo, tudo para a construção de um novo império, uma revolução, uma nova ordem mundial, ainda que tudo o seja à escala regional de uma freguesia ou uma aldeia. Tu, cara a cara com o meu fumo, dizes-me um sorriso rasgado com uma palmadinha no ombro. Mas eu bem sei da faca que seguras por detrás das costas. É tudo apenas mera propaganda, 'amigo'.
És Judas! Enforca-te! Faça-se assim a Tua vontade. Seu Traidor de meia-tijela. Dás-me um beijo? Que beijo é esse? A redenção? O perdão? "Perdoai-lhes Senhor porque não sabem o que fazem!"... queres que te acene? Tenho mais o que fazer. Já superei os meus limites e as minhas sombras, já me cansei da tua presunção e das tuas manias. És um infiel, um traidor! Maldito! És a merda que condenas! Nos media! Na praça pública! Aos sete ventos! Na tua casa de classe média! No teu salão de tertúlia na Foz! No tasco da tua aldeia quando vais falar de bola e de gajas! Quando apanhas a tua bebedeira para te sentires um ser humano! Quando ajudas a puta da Cruz Vermelha, para desviares os seus fundos à primeira oportunidade! Na ironia com que te ris dos teus e dos que gozam contigo amaldiçoando entredentes a democracia que te impede de os aniquilar! Mas suspiras interiormente. Sabes perfeitamente que os fins justificam os meios, e meios não faltam para a estrada que pretendes trilhar pela portagem mais cara. A tudo isso, eu vejo. Perante todo tu, eu estaco. Fumo. Revolto-me. E aponto. Sei, como o sabe, quem sabe de História, que todas semelhantes hipocrisias terão um dia de acabar.
E findo este canto ás paredes de todas as almas, até da tua!, depois francamente seguro de novo o copo entre as mãos e olho o cinzeiro onde repousa o meu restinho de charro. Está para acabar este meu estado absurdo mas inteligente de ser. Está para acabar e já sinto falta dele, até no ar o fumo quase se evapora mas eu continuo fiel ao que sinto e penso, fiel ao meu dono, cão vadio abandonado na rua. O Bom Filho à casa torna. Adormecem-me as mãos... adormecem-me os sentimentos e as pálpebras quase se fecham enquanto oiço ao longe a magnitude de todos os limites sãos. Bato palmas ao teu ódio enquanto se me esquecem os gestos. Berro os meus dissabores e solto os meus uivos à lua dos teus desejos já saciados. Quero-me de volta! A mim e aos meus!
O baú da memória encerrará o restante.






* escrito pelas minhas mãos e pelas mãos do Street Fighting Man, pode encontrar textos dele em http://umbrellameansfreedom.blogspot.com


. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
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