Os tempos iam difíceis. Aos dias e dias de chuva contínua, de fortes bátegas, em que era completamente impossível o trabalho do campo, seguiam-se agora nevoeiros impenetráveis em que se não via um palmo à frente do nariz.
O lume já havia consumido os últimos cavacos, as lenhas molhadas não garantiam aquecimento, a casa estava empapada como se de cartão se tratasse. O azeite da candeia fazia falta no prato, o do prato na candeia … Adivinhavam-se dias ainda mais complicados.
Aurélia determinou:
- Amanhã vou lá abaixo à vila. Por lá hei-de arranjar casa de gente de posses que tenham preciso de uma criada de fora, duma camareira, duma lavadeira ou seja lá o que for. Irás servir!
Matilde olhou a mãe pasmada. Servir? Deixar o casal? Deixar o seu cão, as galinhas, as cocós, os patos marrecos. Deixar a irmã e a prima Vitoriana??? Dormir em casa de estranhos? Não, não queria…
- Não tens quereres, rapariga. Achas que eu quero? Que quero ou alguma vez quis para ti e para a tua irmã a miséria desta casa. Que foi para isto que te pari negra que nem um tição? De tantas horas em trabalhos de parto? Que nem a tua madrinha, a Russa, te conseguia de fazer nascer? Julguei morrer naquele dia, ouviste? Se não morri e não morreste, não morrerás agora aqui de fome e frio neste casal onde o diabo se escondeu… Amanhã desço à vila. E tu vais comigo, bem se vê…
- Eu? E a Vitoriana, quem toma conta da menina?...
- É lá da tua conta? Já queres determinar a vida, já? Se te digo que vais, é porque vais… para que as senhoras te vejam, te mirem e tenham para si que não és piolhosa nem estás tísica… Magra estás, mas isso até eu… é da raça, bem se entende….
- … a Vitoriana, Senhora minha mãe?...
Matilde esbugalhava os olhos negros na face avermelhada. Duas tranças que nem cordas caiam-lhe até à cinta. Magra, ainda sem formas de mulher, mais parecia um varapau. Assim lhe dizia o tio Veríssimo, quando lhe levava o almoço ao pasto onde apascentava o rebanho (nos dias idos, antes daquele Inverno em que as malvadas comiam até a manjedoura)…
- Matilde, oh rapariga, nem aparentas já a fazer doze anos, estás que pareces um varapau, uma forquilha.
Nessas noites, Matilde quando se despia, à luz do candeeiro a petróleo ou da candeia, como fosse o caso,
mirava-se e remirava-se em frente dum pedaço de espelho já quebrado, pendurado nas traseiras da porta do quarto dos pais… Não, não era varapau… umas pequenas nozes despontavam-lhe no meio do peito …
- Mudaste ou não te mudas? Sais do quarto hoje ou queres dormir ai e eu aqui?
- Já saio, Senhora minha mãe, é só maneiras uma pedaço… já saio, sim senhora…
O quarto dos pais era a única divisão com portas em toda a casa. As raparigas dormiam na casa de entrada, assim chamada por ser exactamente a casa de entrada, divididas por um cortinado de chita do restante aposento. Uma cama de ferro e uma pequena arca onde se guardam as roupas (escassas) eram tudo quanto dispunham para uso próprio. Matilde era a mais velha. Deixara a escola quando concluirá a 3ª Classe e ganhara uma “boneca”. Não uma boneca qualquer, mas uma boneca de carne e osso: a sua prima Vitoriana, agora com quatro anos. Recebera à sua guarda ainda não tinha oito anos. O medo de lhe tocar, de lhe dar a comida era aterrador… Mas não maior do que os arrepios que lhe causavam as palavras da mãe:
- Vou lavar para o rio, levo uma bucha, já sabes, a Vitoriana é tua responsabilidade. Se lhe acontecer alguma coisa eu mato-te!!! Mato-te, ouviste bem??...
Ouvia… ouvia por todos os poros, como se fossem estes ouvidos. Ouvia e morria antes da morte que lhe estavam a destinar: morria de medo. Medo que a Vitoriana, no início bebé, lhe escorregasse dos dedos, que lhe caísse depois no lume, quando este ficava acesso e a menina já gatinhava… medo. Medo e mais medo.
Não lhe tirava olhos de cima o tempo todo. Quando dormia ou quando chorava…
Quando Vitoriana começou a falar, ai Matilde percebeu que a sua boneca era quase como ela. E que, com sorte, teria ali uma companhia preciosa. A sua irmã andava à escola e, no casal para além delas, só a criação, os cães e as ovelhas … ali não passava vivalma…
- … a Vitoriana, Senhora minha mãe?...
Aurélia olhou-a de novo e perante a insistência decidiu que lhe daria uma satisfação:
- Ficará com os teus primos, na casa da tua tia Germânica… só por amanhã, não virá mal ao mundo. E agora deixa-te de conversas, vou esquentar uma panela de água, tomarás banho e lavarás a cabeça. Não quero que digam que a filha da Aurélia anda enxovalhada.
Dizendo isto, tomou-se de trabalhos, buscou um tição no lume, colocou-o no ferro, abriu a arca retirando o único vestido capaz de sua filha. Já lhe estava apertado, mas outro não havia. Engomou-o soprando o ferro, espevitando o calor. Iriam à vila, sim senhor.
Não havia nada a fazer. Aurélia era assim mesmo. Quando se lhe encasquetava uma na cabeça não havia quem a demovesse. Sempre assim fora e sempre assim seria. Estava decidido, Matilde iria ganhar o seu sustento, que também ela o ganhara desde mais nova, se bem que no trabalho da própria casa. Os tempos haviam mudado… agora impunhasse trabalho fora de portas. Seria! Outras assim o faziam e ninguém era menos honrada por isso. Até que aprendiam o que ali não havia quem ensinasse. Eram casas “finas” dos Doutores e dos Engenheiros das fábricas da beira rio… Outros modos certamente haviam de ter…
Levaria a sua filha!
A manhã nascera ensolarada depois de mais de mês seguido de chuva.
Aurélia acordou as filhas, encomendou a mais nova ao irmão para que a encaminhasse à escola, não sem antes lhe ter dado, bem como a Matilde, uma caneca de leite da cabra engrossado com o farelo torrado.
- Senhora minha mãe… não gosto … arranha na garganta…
- Não me faltava mais nada, bebe o leite que doutra farinha não tenho…
Os farelos. Ainda há pouco tempo estavam destinados, à mistura com o milho, aos porcos e às amassaduras para as galinhas e agora eram o pouco que lhes restava. Farinha de trigo, torrada no forno de lenha (alourada) era luxo de que já se tinha até esquecido.
Não havia mais que fazer. A filha trabalharia. Era o melhor para todos, disso estava certa. Uma boca a menos para dar comer! E mais, nas casas dos senhores Doutores, fome não passaria.
Matilde caminhava à sua frente. Aurélia aconchegada o lenço ao rosto, aproveitava as pontas e com elas enxugava as lágrimas que teimosamente lhe turvavam o olhar. Enxambrados, sempre veriam melhor onde por os pés. Os dela e os de Matilde:
- Olha as poças, não metas os pés na água que chegas à vila num nojo só. Quero-te limpa e reluzente.
Dito isto, sacava de um bocado de saca, secava os pés da filha para que os sapatos cardados e de biqueira cortada afim de servirem mais um ano, não se desfizessem como folha de papel. E avançava.
Matilde era agora criada na casa do Engenheiro Bento Murteira. Despedira-se da mãe com um beijo na mão e um “Bênção, minha mãe …”. Engolira as lágrimas e subira ao sótão onde dai em diante seria a sua nova residência. Nem tivera oportunidade de voltar ao casal, beijar a prima, fazer uma festa ao cão!
Que não, que “a rapariga pode cá ficar hoje mesmo. A roupa também não é cá precisa: usará farda e, vestidos meus que não me servem ou das outras criadas que já enformaram …”.
Enformaram!!! O que seria isso de enformar? No casal da serra só se enformavam os queijos. Ou na casa da avó Maria, em dias de festa, os bolos de laranja. Ali na vila as raparigas enformavam!
Subiu ao seu quarto de sótão. Amplo, a toda a dimensão da casa de quatro águas, em telha Lusa, deixava filtrar o vento. Não muito diferentes do da sua casa, de telha vã… Quatro camas, marcavam e demarcavam os espaços. Um varão com um cortinado por cima, num dos espaços, anunciava-se “roupeiro”. Um bacio de noite, um lavatório de ferro, um jarro de água, eram os únicos elementos a preencher o vazio do espaço.
Chegou com o cair da tarde, depois de ter já batido a várias portas e não ter sido aceite em nenhuma. Subiu ao quarto depois de lhe ter sido dado um quarto de pão de mistura e uma caneca esfacelada de chá. Enregelada bebeu tudo num trago, devorou o pão com toucinho meio rançoso e sorriu agradecida à cozinheira. Recebeu das mãos da camareira a sua nova roupa, a camisa de noite, trocou-se, atou um lenço à cabeça por via das tranças não se desmancharem e, exausta, adormeceu. Lá fora o vento e a chuva fustigavam as várzeas e soltavam das amarras os pequenos barcos dos avieiros. Sonhou com o cheiro dos feijões a ferver no lume da sua infância. Com o calor da fornalha, as bolecas da avó...
- Acorda rapariga, tens de ir às compras….
Compras? Nunca tinha comprado nada… no casal não haviam ruas, quanto mais lojas…
- Vais ao mercado. Compras uma couve-galega, um molhe de cabeças de nabos …. Vais à senhora Margarida… a que está na 2ª banca, logo à entrada …
Mercado! Onde era o mercado? Não sabia. Recebeu os recados …
- Que é para a Senhora do Engenheiro Murteira Bento. Que dou ao rol …
Dar ao rol! O que era isso??? Não sabia. A tudo atentava… “uma couve, um molhe de nabos (cabeças) …. dado ao rol…”.
Chovia, corria agora à toa. Perguntava a uma, a outra… “viras à direita” … “cortas à esquerda”…
Finalmente, couve na mão, cabeças de nabo na outra e a chuva a varrer o corpo, viu-se chegada a casa:
- Que porcaria de couve é esta? Uma pileca? Ora volta atrás … que me mande outra. Os nabos servem, não são dos melhores, mas servem…
Voltou, corria e chorava, os sapatos cardados resvalavam a chuva. Chorava e corria …
Na hora da refeição, os restos. Não sobrava quase nada do que ia à sala. Na cozinha comiam-se “os excessos”, o que sobrasse depois de alimentados os Bento Murteiras. Muitas e muitas vezes, enganava-se a fome com pão seco e toucinho salgado e rançoso… e chá!
O tempo ia passando. Maugrado a escassez de alimentos, Matilde ia “enformando”. Entre trocas de couves, de nabiças, de rabanetes ou de peros (ritual diário a que se via submetida) e mandados diversos, Matilde passava a maior parte do seu dia em corridas pela vila. Um dia, num daqueles dias em que a couve lombarda não havia agradado, em que voltava a trocá-la, encontrou uma vizinha antiga:
- Que fazes aqui Matilde? Não sabia que trabalhavas na vila…
- Trabalho sim, senhora Antónia ….
- E gostas de cá estar? …
Debulhou-se em lágrimas …
- Não senhor… Passo fome, eu e as criadas lá de casa… e ando sempre a correr a trocar as coisas…
Antónia olhou-a de cima a baixo:
- Não passarás mais! Senta-te aqui, que te mando eu …
- Não posso, senhora Antónia… a minha Senhora quer a couve e depressa…
- Já lha levas! Ouve-me com atenção. Trabalho nesta casa vai para dez anos, aqui não se passa fome. De manhã levantaste primeiro que eles, não é?
- Sim senhor …
- Pois bem, tiras uma quarta de leite da cafeteira. Bebes! Puro. Enches de igual, com água, percebes? Tu bebes puro, eles bebem traçado … A carne, como é que fazem?
- A minha senhora conta os pedaços antes de serem cozinhados…
- Que conte. Antes de irem para o tacho cortas cada um em dois… e quando cozinhado, retiras os teus … a carne encolhe tanto. Teus e da cozinheira… bem se vê!...
Antónia continuava a instrumentar Matilde. Quando achou serem horas disse-lhe:
- Vai agora. Diz que a couve era a melhor que lá havia, que a senhora Margarida a escolheu a dedo, por ser para quem era …
Matilde tremia que nem junco de rio. Olhou Antónia e entendeu que teria de ser assim. Levantou a cabeça e foi, de braçado com a couve.
À porta, a senhora Benta (como lhe chamava a criadagem) já lhe rezava pela pele …
- Que demora foi essa?...
- Foi por mor da senhora Margarida escolher a melhor couve…
- Ah, mas valeu a pena. Esta sim!
Na manhã seguinte bebeu leite puro. E em todas as restantes manhãs daqueles dois anos – o tempo que por ali ficou. A carne começou a encolher na panela, os torresmos já não davam a banha que era devida … As criadas enformavam e riam pelos cantos. A casa até parecia mais alegre …
Naqueles dias das trocas, Matilde sentava-se na soleira de Antónia (por sorte virada para um beco sem saída, donde não era vista) e esperava. Entretanto enchia-se de saberes transmissíveis na oralidade das coisas … e das servidões!
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