VI
Um beija-flor e o céu límpido. O canto dos bem-te-vis saudando o novo dia. O barulho do motor a diesel de um ônibus na avenida. Minha preocupação maior é não contaminar ninguém aqui em casa, cada vez que alguém tosse entro em pânico. O cheiro do suor na camisa encharcada, uns sonhos em sentidos. Seu Pietro tossiu minha cunhada também, o meu nariz querendo entupir. Começa a labuta dela na sala do computador.
A matriarca manda Seu Pietro fazer as compras no mercado enquanto passa o pano na sala. Estava no quintal onde fui tentar lavar o lenço, mas foi abortado por ela. Todos estão gripados, fico apreensivo. Oh! Vida desgraçada essa minha, nasci negativo. desde criança sempre fui esquisito e isolado. Era o único filho que não comia na mesa, os outros disputavam um lugar, eu preferia comer na sala vendo tv. Me sentia estranho em relação aos outros, buscava refugio na solidão dos meus pensamentos - era de poucas palavras. Nós não tínhamos televisão, naquela época era um artigo de luxo que tinha era considerado um barão. Nos fomos os ultimo a tê-la em nossa rua. Todos os finais de tarde, mamãe, eu e outros nos aprontávamos para assistirmos na casa de Dona Domingas, que morava numa porta e janela no meio da ladeira, ficando em casa somente papai e minha avó paterna Mãe Bibi. Até que um dia fomos pego de surpresa, estávamos aboletados na estreita sala de dona Domingas, fui a janela respirar um pouco e olhei uma camionete bandeirante estacionada na porta de casa, e notei uns homens descarregando alguma coisa e levando para dentro. Curioso, desci até lá, ver que movimento estranho era aquele. Quando cheguei carregavam um pesada geladeira no corredor, entrando na sala, um senhor rosqueava os pés da televisão e um outro o da radiola - ambos da marca ABC - voz de ouro - a mesma de Dona Domingas, minha avó sentada num banquinho com o semblante alegre com o cachimbo na boca contemplava em silencio e Papai acompanhava os carregadores até a sala de jantar para deixar a geladeira. Voltei correndo a casa da nossa vizinha, da cancela da porta disse quase gritando que papai tinha comprado uma televisão. Mamãe levantou-se rápido despediu-se, agradeceu e fomos todos para casa super contentes. Foi uma noite inesquecível. Mamãe era só alegria, minha avó ria com os olhos. Lembro-me da imagem histórica da primeira descida do homem na lua. Nossa casa assemelhava-se a um grande deposito, pois fora construído para ser uma oficina, que funcionou durante um bom tempo, meu pai era um hábil e inteligente ferreiro e com a graça de Deus conheceu um senhor português rico comerciante da Praia Grande, Seu Oliveira que muito o ajudou, inclusive emprestando-lhe dinheiro para comprar o terreno e na construção. A oficina era uma das mais bem montadas, perdia apenas para a oficina da Estrada de Ferro - havia forja industrial, torno mecânico, maquina de solda industrial, um malho elétrico (que vendeu para os Boaventura e continua até hoje lá inativa). No começo dos anos 60, papai pressionado pelo Ministério do Trabalho e pelo da Previdência resolveu encerrar as suas atividades e mudou de profissão. Aproveitando o ponto, montou uma casa comercial em sociedade com mamãe: B.Silva & Cia. Fui o único filho que nasceu lá, morávamos na parte de trás, eram aposentos simples sem muito luxo. Uma pausa para o café preto e quatro bolachas. Na sala uma irmãzinha dita algumas coisa para Antenor que escreve em braile. As folhas dos coqueiros na Praça farfalham ao vento. Daqui do quarto ouço o programa que gostava muito e me fazia rir "A Escolinha do Prof. Raimundo" com o inesquecível Chico Anysio. Relendo "Pavilhões dos Cancerosos" do russo Soljenitsin. Todos já almoçaram e agora descansam. A matriarca deitada no sofá ralha com o cão Bruce que insisti em latir. Seu Pietro tosse, uma luz alerta acende de mim. O caminhão de entrega de cervejas Schin. Um moreno na janela da cabine me observa.
A Casa Bamba sempre uma novidade desagradável, quando não é a companheira do meu sobrinho Danilo, Kika perturbando a siesta sagrada da matriarca após o almoço para futrica-la com perguntas idiotas através do celular, é os gatos urinando sobre as roupas de Sarah que estavam em cima da cama de Larissa. Releio com prazer o livro de memória do grande ator David Niven, sempre o admirei pela sua finura e elegância. Tia Flor e a mãe que vai se operar dos olhos estiveram aqui numa visita rápida. O som alto da televisão do Patriarca invade todos os ambientes. A morte do grande Ariano Suassuna, autor do "Auto da Compadecida", o enterro é daqui a pouco na cidade de Paulista no interior pernambucano.
- A senhora não engomou a roupa para mim - reclamou Larissa com a voz anasalada para a matriarca aperreada com as roupas mijadas que engoma para amenizar o odor. Enfim o ar puro do terraço, um ventinho acolhedor. As professoras na porta da Escola a espera dos pais ou responsáveis retardatários. Uns bandos de pássaros em formação retornam aos seus ninhais. O casal feliz se reencontra. O velho Correia com seu andarzinho típico, assoviando ajunta um pedaço de ripa no meio da rua para fazer a fogueira para esquentar água para pelar os porcos que bate clandestinamente na madrugada no quintal de sua residência