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vIVENDO & ESCREVENDO

 
O CÉU NUBLADO, o rádio na televisão, os gatos deitados no peitoril da mureta do terraço, o gorjeio solitário de um passarinho. Uma moto que passa sobre o improvisado quebra-molas que o PM da frente mandou erguer. Os passos arrastados no asfalto. Os raios solares iluminam as fotos dos mestres Dostoievski e Henri Miller colados na parede abaixo do retrato de Mama Grande. Escaldo as minhas coisas na lavanderia improvisada no quintal, depois bebo café, mas enquanto a água esquentava, observei os novos inquilinos da III Casa Bamba / Vila Embratel. A gata velha, a mãe do enjoado Ling teve uma ninhada de cinco filhotes todos branquinhos com uma pinta preta nos focinhos. Minha cunhada os alojou dentro de uma caixa de papelão e rasgou uma das frentes e colocou debaixo do pé da antiga maquina de costura no canto da copa-cozinha espremidos entre a geladeira e a porta do quintal. As princesinhas ainda dormem. o sono dos inocentes. Larissa sonolenta abriu a janela do quarto da mãe e voltou a deitar-se, e esta faxinava a grande sala pequena de estar. No rádio a propaganda política do estado do Pará. Na Praça do Bacurizeiro bem cedo antes das sete e nenhum papudinho a vista. Os gatinhos abandonados amontoados uns sobre os outros dentro de uma caixa de papelão próximo a um dos portões do mercado. Um moreno baixo, de boné, trajando uma bermuda esperava Diogo, o clown que segundo o mesmo devia-lhe trinta reais.
Todas as tardes mesmas rotinas, almoçar, deitar, ler um pouco,cochilar e dormir a tarde inteira, geralmente sonhar os sonhos esquisitos, sem pé e nem cabeça, com sua ex-amada, voltando ao lar, fazendo as pazes, as juras de amor - enfim coisas que me emocionam muito, pensando em ser realidade e quando desperto deprimo-me, fico reflexivo e pensativo - lembro-me dos momentos felizes que passamos juntos, momentos íntimos nas tardes de domingo antes do nascimento do único filho. A surpresa feliz de revê-lo ainda pouco, depois de conversarem sentados num banco da Praça Sete Palmeira (do Viva) sobre o assunto favorito, sua majestade "O Cinema e seus filmes maravilhosos" - recordando dos bons tempos da Casa grande da Rua Afonso pena, do Venerável Grande Mestre Bamba, o filosofo que amo que ensinou-me a amar a arte cinematográfica - por esta razão que nós gostamos muito. Escrever a verdade do dia-a-dia uma árdua tarefa, principalmente quando não se dispõem de instrumentos adequados, ou seja, conhecimento. Mesmo assim venho teimando. Na sala de estar as meninas brincam e conversam entre si, minha impaciente cunhada assiste um filme. Larissa extravasa as suas tímidas emoções diante do frio computador. O patriarca deitado chama do quarto a pequenina Adriele. "Oi, vô?" - responde correndo em direção a ele. Eu aqui no meu humilde aposento relendo o escritor sul-africano premio Nobel Coetze "O mestre de Petersburgo" - o reggae vindo da Praça do Viva, onde a pouco estive com meu amado rebento. Será que ainda não tive o prazer de ser lido ou alguém ter comprado o meu romance, qualquer um deles? Bocejo, mas o sono não vem, pensando na pobre e sofredora mãe de Diogo, o clown - passando noites em claro, preocupado com ele que não chega andando a esmo pelas bocas em más companhias esperando um desagradável noticia - meu filho sozinho em casa, a mãe na rua com o namorado novo. Os dois agarradinhos num escuro de um quarto de motel. Os anjinhos no aposento de Larissa e uma delas me espionam por trás da improvisada cortina.


SÉTIMO DIA DE SETEMBRO. Domingo, dia da Independência. Ouvindo "Time" do grupo de rock psicodélico dos anos 70 Pink Floyd. Minhas cunhadas foram a feira, para as compras da semana. As princesinhas ainda dormem enroladas nos lençoizinhos delas, próxima uma das outras na cama de Larissa que lava as louças sujas do café e de vez enquanto dar uma curiada no computador. Para afagar meu ego, leio algumas paginas do meu livro publicado na França. Os cães latem em coro com a chegada de Tia Fleur puxando o carrinho cheio de compras. Gostei do estilo e da estória de Coetze, lembrando-me Hemingway em alguns aspectos ou até mesmo o próprio Dostoievski - Clarinha acorda e vem para a sala embarafustar os seus papeis num bauzinho de plástico e faz-me perguntas sem nexos. Sintonizo no canal 2 para assistir o desfile militar direto de Brasília que acompanhei durante muitos anos aqui nesta sala com o meu velho pai Bamba já decrépito, atormentado pelas doenças diabete e Alzheimer ele não se lembrava de nada. O arbusto da romã cobre a vista da janela, mas percebe que lá fora já é noite. O céu escuro sem nuvens e nem estrelas. Tia Lena a vizinha que mora na primeira casa bebe com minha cunhada depois alguns tempo ausente. No radio-gravador o velho reggae, odor azedo das axilas. A monotonia e a depressão de um começo da noite, o ranger das dobradiças da porta do banheiro. Um gato miando - coço a barba rasa, não consigo coordenar os meus pensamentos e coloca-los corretamente nos papeis que pretendo escrever. Arroto baixo, quase inaudível. A estática do rádio onde minha cunhada um pouco alta tenta sem sucesso sintonizar uma estação qualquer. E ruim não saber se expressar com gostaria, o barulho vem da cozinha, das tampas nas panelas sobre o fogão. – “Não vem que não tem” - retruca minha ébria cunhada – “Não sei falar com mudo” - Uma duvida me assombra, se devo ou não sai para arejar um pouco, mas para quê, vê e sentir as mesmas tristes emoções, ver os casais felizes namorando e eu solitário sofrendo por não saber administrar meus sentimentos. Um peido barulhento e fedorento. Deito-me de bruços, a coluna dói - no meu do colchão tem um fundo, lembrei-me de Madame Rameaux entrando e saindo dos quartos da Pousada Nazaré na rua do mesmo nome, no prédio neoclássico onde durante muito tempo funcionou um hotel de meu padrinho, um português que conheci pouco chamado Seu Pinheiro. Ela sempre reclamava dos colchões que passávamos a noite e as vezes dois dias. Foram momentos felizes andando pelas ruas desertas do centro namorando na Praça Benedito Leite vendo as putas velhas e travestis embonecadas fazendo ponto na calçada ao lado da lateral da Catedral da Sé disputando os seus clientes. A noite no centro sempre me fascinou desde a minha adolescência. Lembrando-me do romance "Ulisses", o começo com Mulligan e Stephen Dedalus, depois Bloom preparando o seu prato predileto, rins fritos. O colégio onde Dedalus recebe os eus guineis e a missão de entrega o artigo sobre a "febre aftosa" - o enterro do amigo de Dedalus pai e Bloom comparecem ao féretro de um amigo comum, vão na mesma caleça - quando tiver a oportunidade relerei com mais calma. A velha Dublin com pano de fundo e o catolicismo fervoroso.

DIA DA FUNDAÇÃO DA CIDADE DE SÃO LUIS - O computador começa a dar problema eu arquivo esta quase no final, a minha pressa as vezes me leva a fazer loucuras que depois me arrependo, mas agora não tem volta, comecei tenho que terminar. Quando cheguei a Praça do Bacurizeiro encontrei apenas Matraquinha e Seu Valdir Pintor ambos tristes sentados cada um num banco, a espera de outros membros que pouco a pouco foram chegando.

Começo da tarde - minha cunhada prepara-se para sua viagem a sua cidade natal Pedreira para tratar de um assunto referente a sua sonhada aposentadoria. Tia Ângela faz as unhas. Digitei mais umas folhas, ouvi as canções bregas com Jackson do Pandeiro e outros. Para levantar um pouco a minha decaída moral, enquanto assistia a um filme insosso na sessão da tarde, apanhei o antológico "Pé na estrada" do louco Kerouac, que sempre admirei antes mesmo de Lê-lo nos anos 80 - conheci-o através das reportagens e criticas que lia avidamente no sótão da Casa grande dos Bambas, sentado numa poltrona caindo aos pedaços cor jerimum, debaixo de um fortíssima lâmpada de filamento de 100 velas, até que num começo de noite na banca do Irmão, na Avenida Magalhães de Almeida na calçada do prédio do Ferro de Engomar, onde encostava todas as tardes quando vinha de comprar as bisnagas de pão na padaria do Supermercado Lusitana na Rua de Santana encontrei-o nos meios de outros livros usados, o exemplar de "Os Subterrâneos" com a apresentação do velho e bom Henri Miller elogiando a sua prosa. A historia de amor entre ele e a negra Maddox Fox foi apenas um aperitivo. Passaram-se quase trinta anos até reencontra-lo numa gôndola circulatória num box de uma editora na Feira do Livro, o que sempre procurei. E agora releio para aumentar a minha autoestima - as vezes duvido da minha capacidade de escritor, sou ou não sou? Então sou o quê um farsante? Que engana a si próprio. A minha personalidade instável, as vezes muda o meu conturbado pensamento. Ora me aceito, ora me odeio e caio em depressão e nada tem sentido. As imagens distorcidas do meu ser questionam-me incansavelmente buscando respostas que nunca encontrarei. Para fugir dessa celeuma psicológica leio e releio Miller, Dostoievski, Balzac, Kerouac e outros - santos evangelhos da sagrada literatura que iluminam a minha escura situação. Não é fácil viver essa dualidade permanente "De ser ou não ser" - ouvindo na SKY os sucessos dos anos 70, que me faz suspirar de saudade da minha vidinha familiar na Casa Grande - de Pai Bamba, de Nhá Gaça, de Mãe bibi, todos. mas sou assim mesmo encabuloso, taciturno, sem firmeza - resumindo sem medo; uma vacilão.
Contos os dias para entregar os livros e apanhar outros na biblioteca itinerante do SESC, a minha única diversão. Aos poucos o céu vai escurecendo, as lâmpadas dos postes acendendo. Um boliviano torcedor do Sampaio Correia chato e abusado de carro com o som alto de uma versão funkeira do hino do seu clube O negão forte barbeiro esposo da irmã de uma ex-amiga Tati que foi companheira do ator Auro Juricié vai para o trabalho de guarda de segurança. Kerouac animou-me a escrever como sei. A confissão de Raskolnikov para a frágil Soniae o safado do Svidrigailov ouvindo atrás da porta no outro quarto. A sofrida Catierina e seus filhinhos amedrontados, abraçados dentro do baú chorando, a malvada da senhoria a alemã Amália quebrando as poucas coisas e expulsando-os do quero. A realidade dura da miserabilidade de uma cidade portentosa com Petersburgo no século XIX. Uma linda lua brilhante surge por trás das casas na direção do Piancó. O vento refresca os sentimentos.


 
Autor
r.n.rodrigues
 
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