Deixa-me cair do coração, não me segures mais
Deixa que me esborrache de facto
Reutiliza os meus ossos para sabão
A minha língua dá-a ao gato
Os meus dedos que nunca tocaram piano
Oferece-os à caridade
Para que peçam esmola nas feiras, nus e sem
vaidade
Os meus olhos, queima-os num maçarico de gás
butano
Azuis de tanto terem olhado o céu
Para que os pintores de futuros jamais se
equivoquem
E o azul verdadeiro do mar, por coisa nenhuma
troquem
O meu sexo, conserva-o em formol
Expõe-no no salão de chã da vila, ali junto aos
bolos de creme
E deixa que as madames o vejam encolhido como
caracol
E bebam a infusão como quem geme
Eu não fui nesta vida mais que prazer
Onanismo, masturbação
Mereço o desprezo da tua alma
Que me deixes cair redondo no chão
E quando na calçada o resto de mim não for senão
uma mancha
De tanto ser calcada, espezinhada
Lava-me na pedra com o sabão dos meus ossos
Vira costas ao tempo
E esquece com alento
Que um dia vivi dentro do teu coração
José Ilídio Torres
in: «Os poemas não se servem frios» Temas Originais 2010