O Idealismo – visão geral
Geralmente, cita-se Platão como o primeiro “Idealista”, pois foi ele quem fez a transposição para o Ocidente dos princípios filosóficos hinduístas, dentre os quais, a concepção de que a “Ideia” é o protótipo, o modelo das coisas físicas, concretas.
A “Ideia” seria, portanto, a “verdadeira realidade”, enquanto o restante não passaria de uma mera cópia da mesma.
O Idealismo Platônico (também chamado de “realismo” ou “realista”), normalmente, é dividido em:
• O aspecto Gnosiológico1.
• O aspecto Metafísico2.
Sendo que o primeiro se refere às questões atinentes à maneira como ocorre o Conhecimento; enquanto que o segundo relaciona-se com aquilo que está “atrás” ou “na base” das “coisas físicas”.
Outro conceito comum, mas não oriundo apenas de Platão, é o do “Idealismo” referente “aos Ideais”; isto é, aos objetivos a serem conquistados ou aos modos de comportamento a serem seguidos etc. Nesse sentido, o Idealismo atrela-se, geralmente, às questões éticas e/ou políticas, tais como “manter a honestidade”, “construir uma democracia” e símiles.
Posteriormente, o conceito foi sendo modificado e desse modo o Idealismo apresentou-se de várias maneiras ao longo da história e, especialmente, na Era Moderna, quando surgiram vários títulos complementares para diferenciá-los, tais como:
• Idealismo subjetivo,
• Idealismo objetivo,
• Idealismo lógico,
• Idealismo transcendental,
• Idealismo crítico,
• Idealismo fenomenológico etc.
Não detalharemos esses tópicos para não fugirmos do objetivo original, o Idealismo Alemão, mas convidamos os interessados a visitar outra obra de nossa autoria, Filosofia Sem Mistérios (vide Bibliografia), onde cada um deles é considerado em particular.
Aqui, adentraremos, especialmente, no universo do Filósofo Immanuel Kant, sem, no entanto, deixar de recomendar o estudo de Filósofos como Fichte, Schelling, Hegel, Leibniz, Malebranche, devido à importância dos mesmos. E, novamente, sugerimos a nossa obra anterior, Filosofia sem Mistérios, onde cada um desses sábios recebeu a merecida atenção.
O Idealismo caracteriza-se por seguir para a reflexão filosófica a partir do “Eu” (ou da alma, espírito, mente etc.) e não a partir das “coisas exteriores”, isto é, dos objetos, dos Seres, dos fatos etc. que estão “fora” do indivíduo.
Essa preferência pelo “Eu (ou pelo sujeito, pelo indivíduo)” baseia-se no fato de que o homem é, fundamentalmente, um “ideador” ou “representador”, por representar em sua mente (“fazer uma ideia”), as coisas que capta através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato).
Vendo, por exemplo, uma fruta, o indivíduo não processa diretamente aquela percepção visual. Ao contrário, assim que o estímulo lhe chega, a sua mente primeiramente o “desenha” ou “representa”, para só então prosseguir com o restante das operações mentais.
Essa é, aliás, a razão de cada coisa do universo ser diferente para cada um dos Seres humanos. Para uns, aquela fruta pode estar madura, para outros, nem tanto etc.
E porque o Idealismo começa com e no indivíduo, alguns religiosos e agregados, afirmam que o mesmo não teve inicio com a Filosofia, mas, sim, com o Cristianismo, particularmente com Santo Agostinho, já que a doutrina religiosa equipara a criatura com o Criador e o torna o “centro do universo”.
Porém, maioria dos estudiosos rebate tal afirmativa, lembrando-os de que foi o Cristianismo que derivou da Filosofia grega (onde a noção do “Idealismo” já estava consolidada) e não o inverso. Portanto, dar-lhe a paternidade é um equívoco absurdo.
Outros eruditos, também desdenham do argumento eclesiástico e insistem na associação do Idealismo com a Gnosiologia. Afinal, sendo o indivíduo o ponto de partida do Idealismo, nele reside a chave para responder a uma das principais questões filosóficas: “como, em geral, as coisas podem ser conhecidas?”.
Outros sábios vão além e afirmam que o “Idealismo” não pertence apenas ao campo da Gnosiologia, mas, também, ao da Metafísica, haja vista que o fato de se conhecer a uma coisa de forma verdadeira e absoluta, implica que se chegou ao “numeno, à essência” da mesma.
E nesse ponto é que se chega a Kant, já que a investigação sobre os limites e a possibilidade de se conhecer a “coisa-em-si” é que forma a estrutura do seu pensamento.
Rejeitando as formas de Idealismo propostas por Pensadores como Descartes e Berkeley, Kant criou o seu próprio sistema, o Idealismo Transcendental, cuja principal característica reside no destaque dado à função de “posto (ou colocado)” no conhecimento, já que para ele, a existência dos objetos externos não é cognoscível apenas através de seu percebimento direto pelos Sentidos, mas, sim, em razão daquele objeto ter sido posto ou colocado no conhecimento; ou seja, o objeto ter sido idealizado ou representado na mente. Não bastaria, por exemplo, eu tocar (usar o tato) nesse computador para conhecê-lo. Eu necessitaria pensar, idealizar, para lhe conhecer verdadeiramente.
Alguns estudiosos, contudo, observaram que o “realismo kantiano” desaparece em Fichte e, principalmente, em Schopenhauer, que equipara o mundo à representação ou idealização do mesmo; e, por isso, afirmaram que o autêntico “Idealismo Alemão” seria, a rigor, pós-kantiano. Além disso, graças ao avanço atual das tendências “Materialistas”, que propugnam que apenas as coisas materiais constituem a “Realidade”, vários estudiosos anunciaram o declínio do Idealismo e até a sua extinção. E alguns sábios renomados como Ortega y Gasset e Heidegger propuseram superar o Idealismo e o Realismo Materialista por alguma outra sistemática.
Porém, a despeito das críticas, outros célebres autores continuam adotando o “Idealismo kantiano”, por entenderem que no mesmo é que reside, de fato, o verdadeiro “Idealismo Alemão”, já que nenhum outro se lhe equipara em termos de profundidade e precisão. Apenas nele, afirmam, podem ser encontradas as ferramentas necessárias para se tratar de questões metafísicas e/ou cognitivas, as quais exigem o seu concurso para que, no mínimo, as investigações sobre as mesmas possam prosseguir.
Desse modo, vê-se que esse renovado e constante interesse pelo ideário kantiano reafirma a sua importância didática e confirma o seu caráter de “libertador do homem” das amarras do Materialismo.
Introdução a Immanuel Kant
A vida e a forma de ser do filósofo Kant foram objetos de estudos de vários eruditos e quase todos destacaram os ecos que a religiosidade pietista de sua mãe deixou-lhe na alma, a sua integridade moral, a sua entrega ao trabalho e ao dever e a extrema regularidade de hábitos.
Idiossincrasias que para a maioria das pessoas são virtuosas e que aliadas à sua coragem e genialidade, fizeram-no ser considerado como o maior filósofo alemão. E mesmo aqueles que não compartilham dessa classificação, são prontos em lhe reconhecer como um dos Pensadores mais brilhantes de todos os tempos.
Geralmente, o seu sistema é dividido em três etapas:
1. Período pré-crítico. Anterior a 1781, quando foi publicada a primeira edição de “Crítica da Razão Pura”.
2. Período crítico, que vai até 1790 quando foi publicada a “Crítica do Juízo”.
3. Período pós-critico, que se estende de 1790 até a sua morte.
Porém, é importante observar que essa divisão é útil apenas como uma primeira apresentação de seu ideário, não devendo ser considerada como uma espécie de “série”, pois o pensamento kantiano é de tal grandeza e complexidade que não pode ser reduzido a divisões formais.
Todavia, essas mesmas “grandeza e complexidade” acabaram se tornando um fator limitante à popularização de suas ideias; o que, com efeito, é um dado a se lamentar, já que através de suas reflexões é possível elucidar várias questões filosóficas e apontar rotas seguras para o desenvolvimento humano.
Por isso, no presente Ensaio buscamos adaptar o seu modo de pensar ao discurso de nossos dias, com o objetivo de trazer à luz toda a sua grandeza.
Temos consciência de que, por isso, alguns aspectos deixaram de ter o aprofundamento adequado, mas estamos certos de que o amável leitor (a) saberá entender o caráter de “iniciação” que se pretendeu com esses escritos.
Breve biografia de Kant
Um século antes de seu nascimento, seus antepassados deixaram a Escócia e seguiram para Konigsberg, Prússia, em busca de redenção para a penúria que os castigava.
Ali, em 1724, nasceu Immanuel, filho de uma devota pietista3, cujo fanatismo religioso despertou-lhe severa aversão pela igreja e pelo clero, embora tenha contribuído para que ele mantivesse até o fim da vida a postura de um verdadeiro “puritano alemão”. Além disso, o fervor religioso materno foi tão marcante em sua personalidade, que o fez buscar uma reaproximação com os pontos essenciais do Cristianismo, quando já estava na idade madura. Em relação ao seu pai, os dados são escassos e isso sugere certa desimportância em sua formação.
Kant viveu na era de Voltaire, do Iluminismo e da apologia ao Ceticismo e à Razão; e não pôde escapar dessa influência, embora, posteriormente, tenha refutado tais concepções.
Outra forte influência que sofreu foi a de Hume, sendo, no entanto, a que mais combateu posteriormente.
Por outro lado, uma figura que teve enorme importância para que ele desenvolvesse o seu ideário, foi o Imperador Frederico, o Grande, que lhe deu plena liberdade para compor, por exemplo, uma obra como “Crítica da Razão Pura” que, em grande medida, colidia com os dogmas religiosos, então, considerados sagrados e, portanto, inquestionáveis. Proteção que, também, lhe foi útil quando ele, em sua fase de reaproximação com a religião, escreveu textos claramente contrários à ortodoxia clerical.
Dificilmente, em qualquer outro governo, um professor assalariado (funcionário público) teria ousado escrever livros e artigos como os seus; como, aliás, confirma o fato de ele ter de prometer ao sucessor de Frederico, que não mais trabalharia nessa direção.
De todo modo, até que essas coisas acontecessem, muito tempo já havia passado e, desse modo, será necessário voltar o olhar para o ano de 1755, onde o encontraremos na função subalterna de “conferencista particular” na universidade de Konigsberg, onde permaneceu por quinze anos.
Nesse período, ele fez duas tentativas frustradas de alcançar o posto de Professor, sendo recusado por motivos menores. Apenas em 1770 conseguiu o cargo de Professor de Lógica e de Metafísica e logo alcançou pleno êxito junto aos alunos.
Seu princípio de centralizar toda a atenção nos alunos medianos (porque os “burros” não teriam jeito mesmo e os gênios não necessitariam de mestres) granjeou-lhe o apoio da maioria e, desse modo, a sua carreira acadêmica transcorreu tranquilamente, dando-lhe, inclusive, matéria para o livro que escreveu sobre Pedagogia, no qual, segundo ele, haveriam “vários preceitos excelentes”.
Aos quarenta e dois anos, solteiro, sem filhos, com poucos amigos e hábitos modestos, vivia para o trabalho e para os estudos. E, em tamanha placidez, que não se poderia imaginar que de sua genialidade oculta brotaria um Sistema Filosófico que iria revolucionar a Filosofia, a Moral e a Teologia.
Ele próprio parecia acomodado à sua rotina, permitindo-se apenas alguns ataques teóricos e sem maiores consequências à Metafísica, que lhe parecia “um escuro oceano sem costas ou faróis” e aos adeptos da mesma, sobre quem dizia serem “moradores nas altas torres da especulação... onde há, em geral, muito vento”.
Uma tranquilidade condizente com os seus interesses da ocasião: as coisas concretas, materiais, físicas. Seus estudos e escritos da época, versavam sobre planetas, terremotos, fogo, vento, éter, vulcões, geografia, etnologia e assuntos similares.
E mesmo quando se permitia a alguma ousadia, como defender a ideia de vida extraterrestre, as suas divagações embasavam-se, apenas, em dados empíricos ou racionais, como ocorreu em sua “Teoria do Céu”, que buscava explicar os movimentos celestes através das “Leis da Mecânica”, em clara alusão à “Hipótese Nebular” de Laplace.
Porém, a partir de certo momento e noutro campo de estudo, a “Antropologia”, ele começou a emitir sinais de seu desligamento com o antigo padrão, como se percebe no fato de ele ter sugerido a possibilidade de o homem ter sofrido um processo evolutivo, ao estilo, posteriormente, consagrado por Darwin.
Foi, certamente, o inicio de suas reflexões menos convencionais, as quais redundaram nas teses que abalariam o vetusto edifício em que se abrigava o Pensamento da época; pois, ao admitir, por exemplo, o “processo evolutivo” e, até mesmo, ao especular sobre “Seres extraterrestres” mais inteligentes que o homem, ele se opunha a dogmas religiosos como o “Criacionismo” e à ideia de sermos “o ápice da Criação”, feitos “à imagem e à semelhança do Criador”.
Em suas palavras:
“Não sabemos como a natureza provocou essa evolução e quais as causas que a ajudaram. Essa observação nos leva muito longe. Ela nos faz pensar se o atual período da história, por ocasião de uma grande revolução física, não poderá ser o segundo de um terceiro, quando um orangotango ou chipanzé desenvolverá os órgãos que servem para andar, tocar, falar etc. chegando à estrutura articulada de um Ser humano, com um órgão central para o uso do entendimento e evoluir gradativamente sob o treinamento das instituições sociais”.
Sinais, que se consolidaram e cristalizaram o seu rompimento com as doutrinas hegemônicas da época, bem como o avanço em sua determinação e em suas concepções.
Avanço, aliás, que o fez enfrentar as dificuldades financeira, profissional e social, para continuar o trabalho que rendeu, após quinze anos, a sua grande obra, “A Crítica da Razão Pura”, publicada em 1781, quando ele tinha 57 anos de idade.
Depois, seguiu essa nova trilha e produziu livros e textos que balançaram as normas sociais e religiosas de forma tão significativa que ainda hoje são paradigmas.
Por fim, faleceu aos oitenta anos de idade, de forma tão tranquila quanto viveu. Sua missão estava cumprida.
Cronologia
Nasce em 22 de abril de 1724, em Konigsberg, Prússia.
Em 1763, publicação de “O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus”.
Em 1766, publicação de “Sonhos de um Visionário, interpretação mediante os sonhos da Metafísica”.
Em 1770, apresenta à universidade de Konigsberg a Dissertação “Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo inteligível”.
Em 1781, publicação da primeira edição da “Crítica da Razão Pura”.
Em 1783, publicação de “Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa vir a ser considerada como ciência”.
Em 1785, publicação de “Fundamentação Metafísica dos costumes”.
Em 1788, publicação da “Crítica da Razão Prática”.
Em 1790, publicação da “Crítica da faculdade de julgar”.
Em 1793, publicação de “A religião dentro dos limites da simples razão”.
Em 1798, publicação de “O conflito das faculdades”.
Morre em 12 de fevereiro de 1804.
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As Obras
Antecedentes à primeira Crítica
Com o advento do Iluminismo, passou-se a delegar à Razão, à fria racionalidade, a incumbência de responder a todas as questões filosóficas.
Ecoando o movimento de Voltaire, Diderot e outros pensadores, Francis Bacon fez com que a Europa e o resto do Ocidente outorgassem ao raciocínio, à Razão, a primazia de ser “o verdadeiro pensar”. Fez com que se depositasse irrestrita confiança no poder das Ciências e da Lógica para resolver em definitivo as dúvidas filosóficas e para ilustrar “o quão perfeito é o homem”.
E Condorcert, Spinoza e mais alguns eruditos, não hesitaram em seguir esse novo caminho, tornando a crença, a fé e a própria divindade, em meras figuras míticas e místicas, nascidas em um Passado sombrio e formadas apenas pelas trevas da ignorância e da superstição.
Assim, quando os Filósofos Helvetius e Holbach desfecharam o ataque mais possante – que fez “o próprio clero tornar-se ateu” – , poucos duvidaram de que o novo padrão viera em definitivo.
Contudo, ainda existiam aqueles que não se conformavam com o rumo proposto e, dentre estes, destacava-se a imponente figura de Jean Jacques Rousseau, que nunca deixou de acreditar na força e na importância dos sentimentos, das sensações, das intuições e da fé, em contraponto ao “Deus Raciocínio” ou à “Deusa Razão”.
E a sua pregação, mais a inexistência de provas efetivas de que a Razão fosse infalível, fez com que outras vozes eruditas seguissem-no, como aconteceu, por exemplo, com John Locke, que pela primeira vez analisou a Racionalidade segundo as premissas da Filosofia; ou seja, de maneira lógica e criteriosa.
Ao afirmar que todo conhecimento proviria necessariamente daquilo que foi captado pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e que, ao nascer, a Mente seria um quadro em branco (uma tábula rasa), inexistindo, portanto, as chamadas “ideias inatas”, Locke, de certo modo, reduziu-a a Razão à condição de um “órgão com funções definidas” e dependente dos estímulos externos para formar conceitos, pensamentos, julgamentos etc.
Outra voz que se destacou nesse campo, foi a de George Berkeley ao afirmar que “o Real, a Verdadeira Realidade” não é a matéria em si, mas a nossa percepção da mesma. Com isso, embora refutasse a tese Materialista de Locke, ele reafirmou, de modo indireto, a desimportância da Razão, haja vista que ela continuava dependente do que fosse captado pelos Sentidos para formar seus conceitos, pensamentos ou juízos.
E ainda nessa trilha, David Hume também advogou a dependência da Razão em relação aos sentidos, quando exarou sua tese acerca da inexistência de qualquer Metafísica, advogando a noção de que só existem, de fato, as coisas físicas, concretas.
Vê-se, portanto, que o argumento inicial de Rosseau foi seguido, de modos diversos, por importantes eruditos e se consolidou como uma tendência merecedora de assaz consideração.
E foi com esses avais que ele chegou até Kant.
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Ao ler “Emilio”, obra prima do genebrino, Imannuel Kant encontrou no autor um homem que também buscava escapar da maré “Racionalista e Materialista” que predominava na ocasião e era vista com um símbolo de “modernidade e esclarecimento”.
Descobriu um homem que não tinha o menor pejo em afirmar a sua crença na superioridade do sentimento em relação ao raciocínio e que, consequentemente, não hesitava em duvidar da hegemonia da Razão.
Achou, ao cabo, alguém que não temia ir contra a corrente.
Então, para expor as suas próprias dúvidas sobre os limites e sobre a real capacidade da “Deusa Razão”, ele viu que chegara o momento de iniciar a sua obra grandiosa.
Ali nascia o “Criticismo kantiano”.
A Crítica da Razão Pura
Antes de tudo é importante assinalar que o termo “Crítica” não tem o significado que vulgarmente lhe é dado; ou seja, não se trata de um sinônimo de “censura”.
Kant não ataca a “Razão Pura”; ao contrário, enaltece-a por considerá-la uma forma de Conhecimento que, embora limitado, está isento de qualquer contaminação oriunda das captações imperfeitas dos sentidos humanos.
Portanto, deve-se entender este título como: o estudo crítico, minucioso e detalhado dos limites e capacidades do “Saber Racional”.
Outro ponto importante a ser esclarecido é a própria “Razão Pura”. O que é exatamente esse elemento?
“Razão”, no contexto filosófico, equivale a raciocínio, juízo, análise etc. É a capacidade ou a faculdade de se conhecer, analisar, conceituar, definir etc. qualquer coisa com base nas evidências sensoriais (no que foi captado pelos Sentidos), devidamente organizadas pelas propriedades naturais da mente humana e de acordo com as regras da Lógica.
Quanto ao adjetivo, “Pura”, o sentido comum da palavra se mantém e indica a não contaminação por dados falsos, incorretos, incompleto etc. que são próprios do saber adquirido apenas “empiricamente"; ou seja, através dos experimentos ou experiências físicas.
A “Razão Pura” é uma faculdade ou capacidade que nos pertence, graças à inata estrutura e natureza da mente humana.
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Feitas essas preleções, veremos que por acreditar na existência dessas capacidades naturais da mente e, por consequente, no “Saber Inato”, Kant iniciou o seu livro, opondo-se à concepção do filósofo Locke – e dos outros membros da chamada “Escola Inglesa” – que afirmava que todo conhecimento seria proveniente das experiências sensoriais; ou seja, do que fora captado pelos cinco sentidos humanos.
Hume, outro expoente dessa tendência, afirmava, ainda, que a Mente seria apenas uma espécie “de marcha ou de procissão” de nossas ideias e que as nossas certezas não passavam de simples expectativas de que um determinado resultado voltasse a se repetir eternamente.
Kant contra-argumentou dizendo que o Saber oriundo do que foi percebido pelos sentidos humanos não se sustém pelo simples fato de ter sido originado por falsas premissas, já que os dados coletados pelos sentidos estão longe de serem confiáveis; logo, para que um Conhecimento seja “absoluto” é imperioso que outra habilidade humana complemente o percebimento ou a captação. É preciso, pois, que exista a faculdade ou a capacidade de racionalizar os dados coletados.
Apenas a junção do que foi captado empiricamente (isto é, através de experiências percebíveis pelos sentidos) com o respectivo “Processamento Racional” é capaz de produzir o pleno Conhecimento ou o “Saber absoluto, verdadeiro e necessário”.
Mas, qual serão a real capacidade e o alcance deste “processamento mental, racional”?
Segundo Kant, o “Saber Absoluto e Verdadeiro” não provém da experiência, pois a mesma só nos oferece Sensações e eventos separados, que poderão ser alterados no futuro; e, tampouco, estaria no simples Raciocínio, na Razão, já que ela depende das captações sensoriais para que possa agir e produzir Conhecimento.
Logo, o “Saber Absoluto e Verdadeiro” só pode ser oriundo da junção entre o que foi percebido empiricamente com a racionalização do mesmo.
Em consequência, também se pode concluir que como os “dados sensoriais” são indispensáveis para chegar-se ao “Saber Absoluto e Verdadeiro”, a capacidade e o limite da Racionalidade estão, justamente, nessa dependência. Com isso, Kant comprovou a inexistência do “altar da infabilidade” da Razão, tão caro aos Racionalistas.
Nem os Sentidos (ou Experiências Empíricas) nem o Processamento Racional são, isoladamente, suficientes para que se “conheça verdadeiramente” qualquer coisa, Ser, objeto, fato etc. Tanto o Empirismo da Escola Inglesa (Locke, Hume e outros), quanto o Racionalismo (Voltaire e outros) são limitados e incapazes de revelar o numeno ou a coisa-em-si. O primeiro, por atingir apenas a superfície dos objetos, dos Seres, dos fatos; e o segundo, por ser incapaz de agir sem esses mesmos dados.
A Filosofia Transcendental
Estética Transcendental
Noutra obra de nossa autoria, mencionamos a questão de a semântica ser um poderoso fator inibitório à popularização da Filosofia e aqui encontramos outro exemplo desse fato com a palavra “Estética”, que, na atualidade, é vulgarmente associada com beleza física, corpórea. Embora exista na Filosofia clássica a vinculação do termo “Estética” com o “Belo (o sentimento do belo)”; neste Ensaio, não usaremos o termo nesse sentido e resgataremos o significado original da palavra grega “Aisthetiké”, ou seja: Estética = Sensações ou Sentimento.
Outro ponto a ser esclarecido é o fato de Kant ter chamado de “Filosofia Transcendental” o estudo da estrutura da mente e das Leis inatas do pensamento. O motivo para isso é que tais questões transcendem ou ultrapassam a experiência sensorial.
Nas palavras de Kant:
“Chamo de transcendental o conhecimento que se ocupa não tanto de objetos, quanto dos nossos conceitos a priori de objetos”.
A partir dessa definição, seu primeiro cuidado foi examinar o processo em que as Sensações se transformam em Percepções ou Pensamentos. Observou, então, que o processo se divide em dois estágios. A saber:
1. O primeiro estágio consiste em organizar a matéria-prima das Sensações com o intuito de enquadrá-las nas chamadas “Formas de Percepção” que são o Tempo e o Espaço.
2. O segundo estágio consiste em coordenar aquelas Sensações, já enquadradas no Espaço e no Tempo, nas outras formas de concepção, as chamadas “Categorias do Pensamento".
Assim, usando a palavra “Estética” em seu sentido original, Kant chamou o primeiro estágio de “Estética Transcendental”.
E usando a palavra “Lógica” com o significado de “Ciência das Formas de Pensamento”, chamou o segundo estágio de “Lógica ou Analítica Transcendental”.
Inicialmente, veremos a seguinte questão:
O que se entende exatamente por Sensações e por Percepções e como é que a mente transforma as primeiras nas últimas?
A Sensação, em si, é apenas a consciência de um estímulo ou, em outros termos, é sentir o efeito provocado por algo que nos atinge, como, por exemplo, o doce sabor da uva que comemos. O sentido “paladar” nos deu essa Sensação, como antes o “olfato” já nos dera o odor da fruta etc.
A Sensação, portanto, é o inicio bruto de qualquer experiência e não pode ser considerada como “Conhecimento”, exatamente por causa desse primarismo. Porém, quando várias Sensações sobre o mesmo objeto se agrupam no Espaço e no Tempo, o individuo passa a ter consciência de que aquele objeto existe realmente. Passa, então, a ter uma “Percepção” daquela existência.
É o caso da uva citada no exemplo anterior, pois quando se juntam as Sensações de sabor, odor, visão etc. têm-se a consciência (ou se sabe) de que existe “uma coisa” que reúne ao mesmo Tempo e no mesmo Espaço todas aquelas Sensações.
Nesse ponto, a Sensação transformou-se em “Conhecimento preliminar”.
Esse processo de transmutação de Sensação em Conhecimento goza de aceitação pela maioria da comunidade filosófica, mas o consenso não se repete sobre o motivo dele ocorrer.
Filósofos empiristas como Locke e Hume afirmaram que as Sensações agrupam-se natural e espontaneamente, colocando-se automaticamente na ordem necessária para se transformarem em Percepções.
Kant, porém, rejeitou esse automatismo, pois para ele as Sensações não passariam de uma tropa desorganizada que chega à Mente através de inúmeros canais (ou orgãos dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e inúmeros nervos aferentes que passam pelos olhos, pelos ouvidos, pela epiderme) e que se deposita em suas câmaras à espera do necessário ordenamento para se transformar em saber efetivo.
E a Mente, antes de tudo, faz uma triagem nas Sensações chegadas, porque, nem todas as mensagens são aceitas, vez que há uma multidão de estímulos indevidos que atingem inutilmente o indivíduo (Um típico exemplo dessa situação é a do tique-taque de um relógio que atinge continuamente a nossa audição, mas não é selecionado para se transformar em conhecimento, exceto se o nosso objetivo for escutar-lhe por algum motivo, como o de conferir o seu funcionamento regular).
No passo seguinte, inicia o Processamento das Sensações que podem ser transformadas em Percepções adequadas ao propósito do sujeito, ou que lhe possam dar um aviso importante, como o de perigo, por exemplo.
Depois, utiliza os conceitos de Tempo e Espaço para classificar as Sensações, atribuindo-as a este ou àquele lugar ou objeto; e a este ou àquele momento do Presente ou do Passado, haja vista ser impossível notarmos a existência de algo se o mesmo não puder ser relacionado a algum lugar (ou espaço) e há algum tempo (se acontece, se aconteceu, se acontecerá, se está, se esteve etc.).
Na verdade, apenas através desses “órgãos de percepção – Tempo e Espaço” é que se consegue dar sentido à Sensação, pois se elas não fossem organizadas segundo esses parâmetros, seria como se recebêssemos mensagens abstratas, surreais, desfocadas, justapostas, incompletas e, portanto, inaproveitáveis para a vida prática do indivíduo.
Depois, com as Sensações devidamente classificadas em Tempo e Espaço, a Razão passa a organizar-lhes de modo mais refinado, como se verá na sequência.
Filosofia Transcendental
Analítica ou Lógica Transcendental
Observamos na “Estética Transcendental” os conceitos de Sensações e Percepções. Aqui, na Analítica, trataremos do Pensamento ou Concepção.
Assim como as Percepções organizam as Sensações vinculando-as a objetos e a momentos no Tempo e no Espaço; as Concepções organizam as Percepções em torno das noções de Causa, Unidade, Relação recíprocas, Necessidade, Contingência etc., as chamadas “Categorias”, que formam a estrutura onde as Percepções são recebidas, classificadas e modeladas segundo os parâmetros do Pensamento.
Esse ordenamento das “coisas” elucida como se dá o entendimento ou a compreensão; isto é, como se estrutura o “Conhecimento efetivo”. Além disso, também esclarece outra questão mais abrangente, como veremos a seguir.
Primeiramente, veremos o curso dos elementos que formam o Pensamento e que agem como uma alavanca que ergue o “Conhecimento Perceptual” para o nível de “Conhecimento Conceitual (ou definidor)”, que, por sua natureza superior, proporciona a compreensão (o Entendimento) daquilo que foi captado.
1. Sensação – é um estímulo desorganizado.
2. Percepção – é a sensação organizada.
3. Concepção – é a Percepção organizada.
4. Ciência – é o Conhecimento organizado.
5. Sabedoria – é a vida organizada.
Sabemos, através de Kant, que as etapas acima não se originam nas coisas exteriores, no mundo externo, já que o mesmo só passa a existir quando, dele, tomamos conhecimento através das captações feitas pelos nossos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e/ou pelas Sensações trazidas pelos múltiplos canais aferentes que se distribuem pelo corpo físico do homem. E também sabemos, graças ao mesmo, que é a Mente que dá ordenamento a tudo que lhe chega.
Kant, a partir dessas premissas, concluiu que o mundo não é ordenado por si mesmo. A aparente e suposta “ordem do mundo” só existe porque o Pensamento que se relaciona com ele – ou que o experimenta – é, em si, uma ordem lógica, que se “esparrama” sobre as “coisas” que lhe chegam.
Logo, as Leis do Pensamento são, também, as Leis das Coisas (físicas, materiais, concretas) já que elas só passam a existir, após terem sido “representadas” ou “idealizadas” pela Mente humana.
Assim sendo, é possível dizer que os Objetos e os Pensamentos são, a rigor, a mesma coisa e essa conclusão levou, entre outros, o filósofo Hegel a elaborar a sua tese acerca da “Dialética”, pretendendo explicar o funcionamento do mundo, como um espelho do que ocorre em nível mental.
Nas palavras de Hegel:
“As Leis da Lógica (do pensamento) e as Leis da Natureza são a mesma coisa e a Lógica e a Metafísica se fundem. Os princípios generalizados da Ciência são necessários (isto é – só podem ser daquela maneira) porque constituem, em ultima análise, as Leis do Pensamento envolvidas e pressupostas em toda experiência passada, presente e futura”.
No próximo item, avançaremos no estudo dessa conclusão de Kant e, também, sobre a noção de “Dialética”, sob o ponto de vista kantiano.
A Dialética Transcendental
Uma das faces mais conhecidas do pensamento kantiano é a diferenciação que ele fez entre a “Essência da Coisa, do objeto ou do Ser (a “coisa em si” ou o “numeno”)” e o seu “Fenômeno”; isto é, aquilo que pode ser captado pelos humanos.
Segundo Kant e outros pensadores, o mundo que conhecemos é uma construção mental que erguemos a partir da Idealização ou Representação, das coisas (objetos, Seres, fatos etc.) que captamos ou percebemos; os chamados “estímulos”.
O objeto captado é uma “aparição”, um “fenômeno” e, talvez, muito diferente do que seja “em si, em essência”.
E disso decorre a nossa eterna incerteza sobre “a coisa em si”, a qual, inclusive, pode ser apenas um “Objeto do Pensamento”, existente na própria Mente.
Nas palavras de Kant:
“Continua inteiramente desconhecido para nós o que os objetos podem ser por si só e fora da receptividade dos nossos Sentidos. Nada conhecemos, exceto a nossa maneira de percebê-los; maneira peculiar a nós e não necessariamente partilhada por todos (já que um animal, provavelmente, a percebe doutro modo – nota do autor) embora o seja, sem dúvidas, por todos os Seres humanos. A Lua que conhecemos, por exemplo, é meramente um feixe de Sensações, unificado pela nossa estrutura mental inata, através do processo de transformação dessas Sensações em Percepções e, destas, em Concepções ou Ideias. Por isso se pode dizer, que para nós a Lua é apenas as nossas Ideias”.
Em verdade, essa distinção entre a Essência e o Fenômeno foi um resgate do antigo ideário platônico da “Ideia”, enquanto modelo ou padrão para as “cópias” individuais e físicas que existem no mundo concreto, ou no “mundo das aparências”.
E dela nasceu o conceito da Dialética Transcendental, que ao examinar as premissas colocadas pela Ciência e pela Religião como “absolutas, necessárias e verdadeiras” comprovou a falácia das mesmas, já que:
A Ciência, não consegue chegar à “coisa-em-si”, embora se intitule “transcendental” e, portanto, capaz de ultrapassar a Sensibilidade (ou Sensação).
A Religião, tampouco, pois, embora tenha pretensão igual à da ciência, limita-se a paralogismos (raciocínios falsos), exarados por ingenuidade ou por má fé.
As antinomias (a contradição entre dois Princípios ou entre duas Leis) que se repetem na Ciência apresentam-se para muitos estudiosos como um problema insolúvel. Todavia, para Kant existe uma saída para esse impasse, bastando que se procure socorro na Filosofia, já que ela ensina que o Tempo e o Espaço são “modos de percepção e de concepção”, ou seja, maneiras inatas de se assimilar, racionalizar e compreender; e não “coisas” que estão sujeitas às Leis antagônicas da matéria, que causam as contradições.
E processo semelhante se verifica na Religião, onde os paralogismos da chamada “Teologia Racional” tentam provar cientifica e logicamente:
• A existência de um “Ser Necessário (Deus)”
• Que a alma é uma substância indestrutível
• Que o livre-arbítrio está acima da Lei de Causa e Efeito
• Etc.
Esquece-se (sic) que a Forma, a Causa, o Efeito etc. são elementos que estão relacionados apenas aos Fenômenos e às experiências sensoriais e não ao mundo das essências, da “coisa-em-si”. Escamotea-se, por inocência ou por má fé, que a Religião, portanto, não pode ser comprovada cientifica, racional e logicamente; sendo, apenas, um “objeto da fé”. Algo em que se acredita, ou não. E, justamente por isso, muito longe de ser uma “Verdade” universal e inquestionável, como desejam os que nela acreditam, ou que dela dependem emocionalmente, ou que nela trabalham, ou que nela se locupletam.
Por isso, o mestre alemão, em sua “Dialética Transcendental”, condensou de forma crítica as suas argumentações contra as pretensões dos homens da Ciência (os Racionalistas e os Materialistas); e, também, as censuras aos “Idealistas extremados”, que descartavam toda existência objetiva, concreta, e aos adeptos da “Teologia Racional” que tentavam vestir a religiosidade com a túnica científica e lógica.
Afinal, como ele demonstrara inelutavelmente, para se chegar ao âmago do Conhecimento, não bastaria a Tese de uns nem a Antítese de outros, pois a “Verdade Final” estará sempre na Síntese que se fizer do que foi captado e, depois, racionalizado (representado ou idealizado).
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Por fim, é chegado o momento de se verificar os resultados efetivos que Kant logrou com a sua A Crítica da Razão Pura.
Considerando-se que proposta inicial do livro era responder às questões metafísicas e salvar o que há de genuíno e absoluto na Ciência e na Teologia, pode-se dizer que o sucesso foi alcançado, pois ao estabelecer a transcendência da Estética, da Analítica e da Dialética, Kant adentrou ao campo da Metafísica para, num segundo momento, buscar as soluções para os problemas da mesma. E, por destruir a jactância da Ciência ao comprovar a sua limitação ao mundo fenomênico, ele a teria salvado de sua própria ingenuidade. E de maneira similar teria salvado a “Essência” da Religião ao comprovar que os seus objetos de fé (Deus, alma incorruptível etc.) nunca poderão ser comprovados pela Razão, já que a crença não pode ser racional sob o risco de se extinguir.
Afinal, como bem disse o Mestre Eckart (sec.XIII, Alemanha): “Creio porque é absurdo” (Ou seja, se não fosse absurdo, se fosse mensurável eu não precisaria crer, pois eu poderia compreender).
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É claro que as suas ponderações causaram muito descontentamento entre os homens da Ciência e os da Religião, além de várias censuras de outros filósofos que chegaram a dizer que o seu sistema seria apenas uma cópia do de Hume, ou uma derivação do de Bekerley etc.
Os homens da Ciência ressentiram-se por verem evaporar as suas “Verdades Cientificas”. Por ter sido demonstrado que lidavam apenas com a superfície, com a “casca das coisas” e que os seus enunciados seriam tão corruptíveis quanto os seus objetos de estudo.
E se ressentiram os Religiosos por ter ficado provado que a sua “Verdade” era apenas sua e de quem lhes compartilhasse a crença, não podendo pretender-se que fosse geral e inquestionável. Foi, é certo, um grande abalo que sofreram, pois, até então, a existência de Deus não podia sequer ser colocada em dúvida, sob a pena de sanções eclesiásticas, sociais e judiciais. Ademais, foi-lhes tirado o status de “Arautos da Verdade”, pois a “Verdade” já não existia como antes.
Contudo, tais reações poderiam ser esperadas, pois toda genialidade tira os medíocres e os maus intencionados da sua “zona de conforto” e em vista desse abalo, só lhes resta protestar, ou pior, caluniar.
O fato é que Kant, em sua grandeza, contrapôs-se ao Materialismo, mas sem cair em um Idealismo ingênuo ou radical.
Ao contrário, elevou-o ao patamar das “Essências”, à Metafísica e com isso escreveu o seu nome de forma perene entre os grandes sábios da humanidade.
Veremos na sequência, as suas ponderações sobre a religiosidade e sobre o Poder Político.
A Crítica da Razão Prática
Antes de tudo será necessário desvincular dois conceitos que são confundidos com frequência: a Teologia e a Religião.
A Teologia, como se sabe, é o estudo sobre a (s) divindade (s), enquanto que a Religião é o exercício da crença irracional em algo ou em alguém (geralmente em Deus, em suas diversas representações, tais como: o judeu-cristão, Tupã, Oxumaré etc.).
Segundo Kant, a Religião não pode ser baseada na Ciência nem na Teologia. Na primeira, pelo natural e inevitável confronto com o Materialismo empírico dos estudos e conclusões científicas. Em relação à segunda, a Teologia, em virtude da inconsistência dos argumentos, conceitos e conclusões teológicos, os quais, não raro, beiram à reles superstição, aos argumentos mitológicos, ao animismo primitivo etc.
Mas, então, em que base a Religião poderá ser lastreada?
Segundo o filósofo, apenas a “Lei Moral” seria adequada para lhe servir como fundamento.
Contudo, essa “Base Moral” deve ser “absoluta”, ou seja, não resultar de experiências sensoriais duvidosas, tampouco de raciocínios ou reflexões incorretos ou mal intencionados.
Há que ser a Moral proveniente apenas da Intuição inata, a priori, que nos “diz” o que é bom e o que é mau. A Moral que tenha os seus princípios tão absolutos, tão certos e tão necessários quanto são, por exemplo, os Princípios da Matemática (afinal, 2+2=4, independentemente de qualquer circunstância, condição etc.).
E para tanto, é preciso que o homem encontre uma “Ética Universal (isto é, para todos e tudo) e Necessária (isto é, aquilo que só pode ser daquela forma)”, através da qual se chegue ao pleno e constante exercício dessa moralidade.
É preciso, pois, estabelecer que a base da Religião seja um Imperativo Absoluto Categórico, o qual, Kant definiu da seguinte maneira:
“O Imperativo Categórico é agir como se a máxima de nossa ação fosse tornar-se, por vontade nossa, uma lei universal da natureza”.
Ou seja, deve-se agir de tal maneira que as nossas ações possam ser repetidas pelos demais, sem que isso cause qualquer malefício a outrem. Deve-se, portanto, evitar todo comportamento, que se fosse adotado pelos demais impossibilitaria o convívio social.
Sabemos, por exemplo, que uma mentira poderia ser-nos ser útil em determinada situação, mas ainda que se pense em utilizá-la, nós a rejeitamos por não desejar que ela se transforme em uma Lei ou Regra geral, haja vista que se tal acontecesse não se poderia confiar em mais nada.
O “Imperativo Categórico” aproxima-se de algumas prédicas religiosas como, por exemplo, a célebre “Regra de Ouro (não faças ao outro o que não desejas para ti)”; e, também, da apologia ao “caráter nacional alemão”, no tocante à seriedade, eficiência e regularidade.
Contudo, a aproximação com a “moralidade cristã”, não tornou o clero simpático a Kant; e ele, tampouco, avalizou a religião que se praticava (e que se pratica), escorada apenas em dogmas vazios e numa liturgia fantasiosa.
Afinal, para ele, com evidente influência do Hinduísmo, o homem deveria retornar a uma divindade desvinculada dos laços eclesiásticos e obedecer apenas a “Lei Moral”, ao invés da “Lei da Igreja”, pois só assim passaria a desfrutar da mais genuína independência frente ao império dos desejos físicos e das coisas “menores”. Libertado do “mundo dos fenômenos”, ele compreenderia que essa liberdade é a sua verdadeira essência e saberia que está além e acima das Leis que regem o mundo material, empírico, sensorial. Passaria, então, a sentir a sua própria transcendência.
É claro que essas teses soaram ameaçadoras para os “homens da Igreja”, principalmente, porque ao afirmá-las, Kant não estava tomado por um ingênuo fervor místico nem por um ódio gratuito. Sua argumentação baseava-se apenas na evidência a que qualquer raciocínio mediano poderia chegar.
E o contra ataque não demorou a chegar, mas Kant estava preparado para suportar-lhe, como veremos na sequência.
A Razão e a Religião
Crítica da Faculdade de Julgar e A Religião dentro dos limites da Razão Pura
No tópico anterior, e mais solidamente a partir deste, o leitor (a) perceberá que o “Idealismo Kantiano” assumiu o outro significado do termo que citamos no preâmbulo, “Idealismo em Geral”, e, com isso, passou a ser mais voltado aos “Ideais”, enquanto norma de conduta desejável para os assuntos religiosos e políticos.
Quando Kant proclamou a sua teoria acerca da “Lei Moral”, ele se opôs de modo direto, e talvez intencional, ao clero ortodoxo e aos adeptos da chamada “Teologia Racional”, que buscavam vincular a crença com a racionalidade. Os “doutores da igreja” alegaram, em contrapartida, que a religiosidade proposta por Kant, baseada apenas na fé, na ética e na esperança, não passaria de um reles animismo primitivo, indigno da civilização de que eles se julgavam o ápice, por serem os “representantes de Deus”.
É claro que essa reação furiosa não foi motivada por zelo teológico, mas, sim, pelo temor de que seus privilégios e sinecuras fossem questionados e, com o tempo, extintos.
E também os Governantes, que tinham na Religião um poderoso instrumento de controle social, sentiram-se incomodados com o discurso kantiano, vendo-o como uma semente para futuros questionamentos sobre a legitimidade de seus próprios poderes.
Eram, com efeito, duas forças contrárias de terrível magnitude com que Kant teve que se confrontar.
Todavia, não obstante os seus sessenta e seis de idade, a sua frágil compleição física, a sua pequena fortuna e a sua personalidade tímida, ele não se intimidou e nem recuou em suas opiniões.
Ao contrário do que imaginavam aqueles que tentaram intimidá-lo, ele escreveu mais dois livros sobre o assunto e com isso criou, ou reforçou, as bases para o futuro laicismo do Estado e para a relativização dos dogmas religiosos.
A seguir, analisaremos brevemente esses textos.
A Crítica da Faculdade de Julgar ou
A Crítica do Juízo.
Nesse livro, Kant retomou a discussão que havia iniciado na “Crítica da Razão Pura” sobre a chamada “Prova Teleológica4” da existência de Deus, para tornar a rejeitá-la por julgar-lhe insuficiente.
Sua argumentação, de fato, pulverizou a suposta “conclusão lógica” que os seguidores da “Prova ou Argumento Teleológico” haviam extraído de suas equivocadas ilações acerca das noções de “Planejamento” e “Beleza”, já que imaginaram que por ser “Belo (isto é: simétrico, unificado etc.)” o Mundo fora planejado por “alguma inteligência”, o quê comprovaria a existência de Deus.
Kant admitia que muitos objetos da natureza exibissem, de fato, essa “Beleza (utilidade, propriedade)” e que isso pudesse criar a sensação de haver um verdadeiro projeto (divino) na construção do mundo.
Argumentava, porém, que também não se pode deixar de ver, que existem na natureza várias anomalias, desperdícios, repetições, inúteis multiplicações, deformidades, etc. e, com isso, se percebe que o imaginado “projeto divino” não existe realmente, já que seria ilógico afirmar que um suposto “Ser Perfeito” pudesse ter feito algo repleto de erros.
Portanto, seria inquestionável que aquele “simulacro de projeto” não serviria como prova indubitável da existência do divino.
Essa continuidade da negação custou-lhe algum constrangimento, pois Frederico Guilherme II, ao contrário de seu antecessor, o Imperador Frederico, o Grande, não demorou em aplicar-lhe algumas sanções governamentais, haja vista a sua aversão às políticas e ideias liberais, que ele taxava de “impatrióticas e eivadas do Iluminismo francês (sic)”.
Porém, essas reprimendas não o fizeram calar-se e após três anos, já então com sessenta e nove de idade, ele escreveu o que alguns consideram o seu livro mais ousado. É o que veremos a seguir.
A Religião dentro dos limites da Razão Pura.
Prosseguindo em sua censura contra a equivocada e/ou má intencionada ortodoxia eclesiástica, Kant reafirmou nessa obra que a Religião só poderia ter como embasamento a “Razão Prática”, a do senso moral, e que, por isso, qualquer Bíblia ou “Revelação” deveria ser julgada apenas por sua moralidade.
Além disso, a Religião não teria qualquer direito de se arrogar o posto de “juiz dos homens”, já que os seus dogmas só teriam algum valor se servissem como auxiliares ao desenvolvimento da ética humana.
Para ele, quanto mais liturgias e cerimônias usurpassem a prioridade da excelência moral, menos sincera seria a crença, haja vista que “igreja verdadeira” deveria ser uma comunidade em que as pessoas se unem pela devoção à Lei Moral; ou seja, em favor da ética, da tolerância, da solidariedade etc.
Aliás, a seu ver, foi para criar esse tipo de comunidade que Jesus Cristo teria vindo ao mundo. Fora essa a igreja que ele planejara contra eclesiasticismo dos fariseus. Todavia, depois, outro eclesiasticismo soterrou essa nobre intenção.
Nas palavras de Kant:
“Cristo trouxe o reino de Deus para mais perto da Terra; mas foi mal interpretado, e em lugar do reino de Deus estabeleceu-se entre nós o reino do padre (pastor, pai de santo, monge etc. nota do autor)”.
Credo e ritual substituíram a “Boa Nova (Os Evangelhos)” e em vez dos homens ficarem unidos pela religião, dividiram-se em mil seitas.
Além disso, não se tem o menor pejo em se “exigir” milagres, como se Deus fosse um mero doador de benesses e de nada servissem as Leis da Natureza, as quais estariam sujeitas ao poder das orações e dos interesses individuais.
Porém, para Kant, o nadir (o ponto mais baixo) da Religião ainda não era esse; pois, em seu modo de ver, esse “fundo do poço” acontece quando ela se vende ao Poder Político e se torna um sórdido instrumento de repressão e de controle, nas mãos de um governo corrupto, maléfico, ilegítimo etc.
Opiniões contundentes e provocativas, certamente. E por conta delas, Wollner5, o Ministro da Educação, não tardou em iniciar uma feroz perseguição contra Kant, que, novamente, não se intimidou e nem deixou de buscar meios para expor as suas ideias.
Assim, ante a impossibilidade de o jornal Berliner Nonatsschrift fazer a publicação devido à interdição ministerial, ele remeteu o manuscrito para amigos em Jena (cidade e universidade na Prússia) e, através deles, publicou-o na imprensa daquela universidade, ao abrigo do liberal duque de Weimar.
A publicação acirrou os ânimos do governo e em 1794, Kant recebeu a seguinte reprimenda:
“Nossa altíssima pessoa ficou muitíssimo contrariada ao observar que fazeis mau (mantida a grafia original - na.) uso de vossa filosofia para solapar e destruir muitas das mais importantes e fundamentais doutrinas das Sagradas Escrituras e do Cristianismo. Ordenamos uma imediata explicação correta e esperamos que, no futuro, não mais provoqueis uma ofensa dessas, mas, isso sim, de acordo com o vosso dever, que empregueis vossos talentos e autoridade a fim de que o nosso propósito paternal possa ser alcançado cada vez mais. Se continuardes a vos opor a esta ordem, podereis esperar consequências desagradáveis”.
Ele nada respondeu. Não era necessário.
A Política e a Paz
Como se viu, as reflexões, as opiniões e a exposição de Kant acerca da Religião, renderam-lhe repreensões e perseguições. Porém, esses incômodos não atingiram limites extremos, graças à sua idade e à sua respeitabilidade; e é provável que as suas posições acabassem sendo esquecidas pelo Governo, se ele não juntasse às mesmas as suas lucubrações a respeito da Política.
Ardoroso adepto de uma revolução na política e de outra nos costumes sociais, as suas ideias revolucionárias foram expostas pela primeira vez em 1784 com a publicação de seu livro “O Principio Natural da Ordem Política Considerado em Conexão com a Ideia de uma História Cosmopolita Universal”.
Posteriormente, ele não hesitou em aplaudir a “Revolução Francesa”, que em 1788 aterrorizou as monarquias europeias. Demonstrava, então, uma faceta inesperada para alguém de sessenta e cinco anos de idade e pacata personalidade.
Ao contrário, diga-se, da quase totalidade de seus colegas professores, que não titubearam em demonstrar apoio à monarquia e, em particular, ao seu soberano Frederico Guilherme II.
Em suas reflexões, ele discordava de seu ídolo Rosseau nalguns pontos, pois, a seu ver, era a luta de cada indivíduo que faz o homem desenvolver as suas habilidades.
A disputa, portanto, seria indispensável para o progresso humano por imposição da própria Lei Natural, já que se os homens vivessem “na paz dos cemitérios”, nenhum desenvolvimento haveria.
Porém, a par dessa apologia à competição, Kant lembrava que a luta entre os homens teve de ser regulada em certos padrões e limites para evitar que o seu excesso destruísse os benefícios que havia proporcionado.
Em suas palavras:
“Demos graças, pois, à natureza por essa insociabilidade, por esse ciúme e essa vaidade invejosos, por esse insatisfeito desejo de posse e poder. (...) O homem deseja a concórdia, mas a natureza é quem sabe o que é bom para a sua espécie; e ela deseja a discórdia, a fim de que o homem possa ser impelido a um novo emprego de seus poderes e a um maior desenvolvimento de suas capacidades naturais”.
Enquanto a sua teoria tratava apenas dos indivíduos, as censuras que granjeou embutiram-se naquelas de ordem religiosa, haja vista que ela se contrapunha à ideia de um homem dócil aos ditames dos “Superiores” e/ou aos dogmas bíblicos de ter sido feito “à imagem e semelhança de Deus” e de que faria parte de uma “espécie eleita”, que paira acima das “Leis da Natureza”.
Todavia, quando ele equiparou o comportamento das Nações com o dos indivíduos e elevou esse mesmo principio para as chamadas “Questões de Estado”, as investidas governamentais não tardaram, já que ele afirmava que, a exemplo dos indivíduos que se organizaram em uma “Sociedade”, as Nações também deveriam se organizar para que lhes fosse disciplinado o comportamento, evitando-se, assim, a barbárie da exploração, da guerra e das outras mazelas que a belicosidade interesseira dos Estados promovia (e promove) amiúde (uma previsão para ONU?).
Não é difícil imaginar o mal estar que essa pregação causou, pois além de atacar a tolice de alguns valores abstratos como o de “honra lavada em sangue”, “patriotismo ufano” etc.; ele atacava, também, questões de ordem prática, já que a guerra atendia (como ainda hoje acontece) aos escusos interesses concretos de soberanos, militares, clero e outros, que através da luta auferiam (e auferem) poder e riqueza, graças ao aumento na taxação, na produção e no comércio de armas, na partilha dos despojos conquistados etc.
Mas, Kant não se intimidou com as pressões e prosseguiu com suas críticas aos gastos militares em prejuízo das verbas destinadas à Educação, colocando uma questão que ainda hoje não foi solucionada.
Em suas palavras:
“Nossos governantes não tem dinheiro para gastar na educação pública (...) porque todos os seus recursos já estão aplicados na conta para a próxima guerra”.
E, assim, com uma coragem que beirava a audácia, censurava asperamente a sua própria Alemanha natal pela iniciativa de formar exércitos permanentes, os quais, aliás, mereceram-lhe a seguinte definição:
“Exércitos permanentes excitam os Estados, levando-os a sobrepujar uns aos outros no número de homens armados, que não tem limite. Devido às despesas provocadas por essas situações, a paz se torna em longo prazo mais opressiva do que uma guerra curta; e os exércitos permanentes são, assim, a causa de guerras agressivas feitas com o fim de acabar com esses ônus”.
Posteriormente, seguindo em sua cruzada, ele publicou, em 1795, o Ensaio intitulado “A Paz Eterna” que se constitui de um belo desenvolvimento do tema.
A República
Para Kant, um dos motivos para o incremento do militarismo e da belicosidade era o aumento da natural ganância humana, com a descoberta das enormes riquezas da África, das Américas e da Ásia.
Comportamento beligerante que lhe causava uma enorme repulsa não só pelo próprio, mas, também, por escancarar a hipocrisia daqueles que se autoproclamavam “civilizados” e “religiosos”. Ademais, a ambição desmedida dos “Senhores da Guerra” também se mostrava ávara, vez que o resultado da exploração colonial era reservado apenas à elite, restando ao homem comum a duvidosa honra de matar e morrer “por seu Rei ou por sua pátria”.
Em suas palavras:
“Se compararmos os casos bárbaros de inospitabilidade (...) com o comportamento desumano dos Estados civilizados e, em especial, comerciais de nosso continente, a injustiça cometida contra eles, mesmo em seu primeiro contato com terras e povos estrangeiros, nos encherá de horror; a mera visita a esses povos era considerada por eles como o equivalente a uma conquista. A América, as terras dos pretos, as ilhas das especiarias, o cabo da Boa Esperança etc., ao serem descobertos, foram tratados como países que não pertenciam a ninguém, porque os habitantes aborígines eram considerados como se nada fossem (...). E tudo isso tem sido feito por nações que fazem um grande alarde sobre a sua piedade e que, enquanto bebem a iniquidade como se fosse água, consideram-se os próprios eleitos da fé ortodoxa”.
Para ele, tal comportamento provinha diretamente da típica forma de governo da época, a Monarquia Absolutista, amparada no falacioso argumento do “Direito Divino”.
Assim sendo, seria indispensável substituir o regime Monarquista pelo Republicano, pois se todos participassem do “Poder Político”, os espólios das roubalheiras e explorações coloniais seriam individualmente menores e isto reduziria a cobiça dos mandatários. Passaria, pois, a ser uma tentação resistível. Além disso, se aqueles que são forçados a matar e a morrer tivessem o direito de optar, o caminho das armas seria, certamente, menos trilhado; ao contrário da situação em que se vivia, quando quem decidia pela guerra não sofria as suas agruras nem as suas consequências diretas.
A esse respeito, aliás, o “Primeiro Artigo Definitivo” de sua obra “A Paz Eterna” proclama que:
“A constituição civil de todo Estado será republicana e a guerra só será declarada por um / plebiscito de todos os cidadãos”.
E a pregação de Kant revigorou-se quando em 17956 a Revolução venceu as forças reacionárias e ele pode imaginar que o Sistema Republicano se espalharia pelo continente, plasmando o seu desejo de que não mais se privilegiasse o indivíduo por conta de sua origem e nem que a ele fossem concedidos os Direitos usurpados aos demais.
Ter-se-ia, então, uma Sociedade que garantiria oportunidades iguais a todos, através de um ensino universal de qualidade; de melhores condições de saúde, de infraestrutura e de bem estar alimentar e cultural etc.
Uma sociedade, que tendo as suas necessidades básicas convenientemente atendidas, pudesse praticar a sua natural solidariedade e generosidade, tornando-as parte integrante do Imperativo Categórico.
Infelizmente, grande parte de seus sonhos e desejos ainda não se realizaram, mas é importante reconhecer que alguns passos foram dados no bom caminho, pois há, no mínimo, o crescimento da conscientização da validade dessas aspirações.
Na sequência, para finalizarmos o capítulo, faremos algumas observações acerca das ideias kantianas.
Considerações finais
Iniciaremos nossos comentários com o seguinte questionamento: serão, realmente, o Espaço e o Tempo apenas “Formas de Sensibilidade” desprovidas de qualquer realidade concreta, objetiva?
Por um lado, pode-se dizer que sim, já que o Espaço é um conceito vazio até que venha a ser preenchido por algo (coisas, Seres etc.) percebido ou captado pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e entregue à mente para ser classificado e organizado. A mente, por si, não tem a capacidade de perceber nada que esteja fora dela mesma e, por isso, é indispensável que Espaço lhe seja introjetado. Por outro lado, é indubitável que existem “fatos espaciais” que independem de qualquer percepção para existirem efetivamente, como, por exemplo, o circuito anual que a Terra efetua ao redor do Sol.
No tocante ao Tempo, também se pode dizer que o mesmo não é apenas uma construção mental, uma “Forma de Sensibilidade”, feita através da coordenação de Sensações, haja vista que a sua efetiva existência pode ser observada no ciclo de nascimento, duração e morte de uma árvore, de um homem etc. Também é importante notar as diferentes formas de percepção entre os dois elementos: o Espaço é percebido através da percepção simultânea de objetos diferentes e de vários pontos; enquanto que com o Tempo, a percepção acontece pela sucessão de momentos, de modo que ele nos chega como uma Sensação de “antes” e de “depois” ou como uma medida do movimento.
Dessa sorte, pode-se dizer que a Kant se deve a “descoberta” dessa outra classificação para o Tempo e o Espaço; pois, se antes ambos já eram conhecidos pelos seus aspectos objetivos, foi graças a ele que as sua condição de “formas de percepção” passou a ser considerada.
Contudo, essa nova forma de encarar os dois elementos não foi aceita unanimemente, sendo alvo de críticas sérias de Pensadores sérios e de censuras menores por parte de pseudointelectuais. Abaixo, expomos algumas das mais significativas sobre esse tópico e sobre outras de suas afirmativas:
A respeito da motivação que levou Kant há colocar o Tempo e o Espaço apenas como simples “elementos para organizar as Sensações recebidas”, alguns estudiosos sustentam que a sua intenção seria a de se opor ao Materialismo que, então, predominava; e, paralelamente, opor-se à ideia de um tipo de Deus que fosse tão objetivo, concreto, quanto eram o Espaço e o Tempo na visão dos Materialistas. Opor-se, portanto, à noção de que tal divindade pudesse vir a ser conhecido racionalmente, como propunham o clero e os adeptos da “Teologia Racional”.
Para outros eruditos, a sua insistência levou-o ao erro, pois já seria mais que suficiente a sua afirmativa de que toda realidade (física, concreta) só nos é revelada através das idealizações (ou representações mentais) que fazemos da mesma, após tê-la captado ou percebido pelos sentidos, pelas Sensações.
Outro ponto que lhe é contestado diz respeito à “Verdade Cientifica” e a sua obsessão pela “Verdade Absoluta”, já que algumas linhas da própria Ciência, inclusive na Matemática, reconhecem-se apenas relativas em suas verdades e se contentam com um alto grau de probabilidade.
No tocante ao seu questionamento sobre o conceito “Categorias” (que desde Aristóteles reinava sem qualquer investigação mais atenta), foram raríssimas as vozes contrárias. Dessa sorte, as suas indagações sobre o tema, ainda hoje são pertinentes. A saber:
• As Categorias ou “formas interpretativas de pensamento” seriam, de fato, anteriores às Sensações e às experiências?
• Ou seriam adquiridas pela memória da espécie e repassadas ao individuo?
• Ou seriam como “sulcos” onde se encaixam as Sensações chegadas?
• Ou seriam apenas hábitos de Percepção e Concepção, provocados pelas Sensações?
• Etc.
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O fato é que nem as discordâncias de Pensadores sérios, capazes e honestos; nem as impróprias divergências de pseudointelectuais foram capazes de empanar o brilho de Kant; assim como, tampouco diminuiu o seu mérito, o rude tratamento que foi dado à sua Ética no século XIX e o fato de os homens da época, rejeitarem peremptoriamente a sua ideia de que o Senso Moral seria inato, a priori, absoluto. Afinal, vivia-se o auge da concepção Evolucionista que proclamava ser o Senso Moral uma espécie de “depósito social” instalado em cada indivíduo. O homem até poderia ter uma inata propensão a viver em comunidade, mas isso não o tornava uma “Criação Divina”, dotado automaticamente da sabedoria sobre o “certo” e o “errado”, já que tais conceitos são relativos e alteráveis, conforme as condições concretas ou objetivas de cada situação.
Aliás, paradoxalmente, na atualidade, após um longo período de Liberalismo, importantes segmentos sociais dão mostras de aceitarem o discurso de Kant, como se ansiassem pela sua proposta de maior rigidez de costumes, de comportamento, de observação extrema de certos parâmetros e de cumprimento de deveres, ainda que a custa de sacrifícios pessoais. Para muitos, esse “chamamento kantiano ao dever” não estava equivocado.
Por outro lado, mudando o prisma de nossas considerações, deparamo-nos com um dos pontos altos do Sistema kantiano ao observarmos a sua maravilhosa guinada em direção às ideias religiosas, que ocorre na segunda “Crítica”, a “da Razão Prática”.
Ideias sobre “Deus, liberdade e imortalidade” que se poderia imaginar enterradas na primeira “Critica” – “da Razão Pura