PRÓLOGO
Não que agora me ocupe da posteridade
Ou seu superficial juízo sobre tudo.
Reconheço porém que tampouco me iludo
D'eu haver alcançado alguma vã verdade.
Se falo é porque fui aonde a alma alto evade
Ou simplesmente o corpo ainda não é mudo
Eu não salvo ninguém. Nem sequer autoajudo.
Também não revisito os postais da cidade.
Vende-se livros? Sim. Muito embora se admita:
Toda bela mentira há tempos já foi dita
E toda boa história há tempos foi contada.
Deveras, falo muito e sobre quase nada...
Mesmo assim sei quem sou: Não mais que outra esquisita
-- Mas muito interessante...-- história inacabada.
* * *
CAPÍTULO UM
Nasço em Minas Gerais, terras altas brasílicas,
Anônimo n’um mar de morros, n’outra serra...
Por isso julgo haver em minha terra
A silenciosa acção das auroras idílicas.
Sem embargo, na luz cambiante das basílicas
Tanto experiência fiz do amor quanto da guerra.
Certo de que, porém, quem muito ama, muito erra
Ao gozo d’emoções eróticas e etílicas...
Tive ouro; tive gado... Hoje, apenas recordo,
Como se aficionado, desde a hora que acordo
Ter amado demais; de demasiados modos!...
E o menino que fui mais esse homem que sou
Sentimos como tudo outrora se passou
Para me exorcizar os meus demônios todos.
* * *
CAPÍTULO DOIS
Quando me dei por gente, era um tipo calado
Acostumado a andar bem perto dos abismos.
Cedo me percebi todo avesso a egoísmos
Sobretudo se algum tirano do meu lado...
Quedava sempre só. Não havia encontrado
Ainda uma ocasião para maus paroxismos.
Apenas me afastava antes dos cataclismos
Que, por uma vez ou outra, eu vivi no passado.
Assim me construí feito alterosa torre
A ver no entardecer, quando rubro o sol morre,
A exacta dimensão de minha soledade.
Entrementes, sentia um imenso embaraço:
Sozinho, naquele alto, a quase crer no espaço
Toda uma vida feita apenas de saudade.
* * *
CAPÍTULO TRÊS
Em se tratando d’eu não ter mostrado factos,
Tal silêncio meu é antes esquecimento.
Pois, nada de importante entendo no momento
Advir-me de quaisquer datas, haveres ou actos.
Tão-só do que escrevi, registos inexactos
Tornando algo aleatório em acontecimento.
Assim os versos têm, sem mor merecimento,
Deixado aqui e ali sentimentos intactos.
Não mais que isso serão quando de vez me for,
Pois, muito pouco vale o que fiz em favor
D’uma arte que se oculta enfim dia após dia.
Por ventura há alguém qu’inda guarde um verso?
Ou não será que em vão reúno o ser disperso
Para apenas escrever -- de mim a mim -- poesia?
* * *
CAPÍTULO QUATRO
É fácil se sentir remorsos d'um passado
Principalmente, quando está tudo perdido.
É fácil se dizer, enfim, arrependido
À medida que o tempo anda p'ro lado errado.
Deprimente é saber que algo pode ter quebrado
Dentro da gente: Quando o nada faz sentido...
Penso até que foi sorte eu ter sobrevivido
À cada extrema vez que me vi n'este estado.
Ser um pouco infeliz; estar insatisfeito,
Eis tudo o que percebo, um tanto contrafeito,
Em face do que vi, ou antes, do que vivi..
Mas me entristece nunca estar onde queria...
Isso pode até ser um tipo de apatia,
Cuja cura tampouco agora eu descobri.
* * *
CAPÍTULO CINCO
A propósito, sei que há acerca da infância
Muita especulação na fé de se explicar
Ou pelo menos pôr o fado em seu lugar,
Ao nos justificar cada afeição, medo e ânsia.
O leitor perdoe, pois, uma certa implicância
Com tema que reluto em miúdo contar.
Fique, como de tudo, o afã de relembrar
Anedotas de então sem qualquer importância:
Recordo ter entrado onde mata fechada
Vedava a luz do sol n'uma só caminhada
Rumo à serra que impedia além o horizonte.
Tarde paro, porém, pela hora surpreendido
Sem reparar sequer que estava já perdido
Enquanto escurecia ali logo de fronte...
* * *
CAPÍTULO SEIS
Há um mito que diz que apenas se nasce poeta...
Eu, todavia, fui meio que pela experiência
Que fiz n'aquela mata onde sem consciência
Tentei verbalizar uma emoção de esteta.
D'oravante, o que fiz foi manter-me dileta
A vontade de pôr o escrito em evidência
Que tem acompanhado a mim pela existência,
Sob pena d'eu passar por pessoa incompleta.
Porque, escrevendo ou não, tudo aquilo que sinto
Era tão lindo quanto o que, ao imaginar, minto...
Já sem saber sequer se sonhei ou vivi.
Deveras escrever passa ser um detalhe;
Vale como registo a quanto fale ou falhe
Ao que, poeticamente, em mim reconheci.
* * *
CAPÍTULO SETE
Cerca de um ano após o incidente da mata,
Em vão me encantaria uma bonita jovem...
Seria algo comum, nada que me reprovem,
Não fosse uns versos sós àquela doce ingrata.
O que então escrevi, hoje apenas maltrata
Avessos corações enquanto se comovem.
A despeito que ainda estes versos me provem
Quão precoce poesia em tão remota data.
De facto, tinha treze anos ou mesmo menos!
Quando me decidi, ante olhos tão serenos,
A poetar um amor de minha juventude.
Foram-me, todavia, as mal traçadas linhas
Que, mesmo tão menino, eu tornei mais vizinhas
-- Rima após rima -- Amor, saudade e solitude.
* * *
CAPÍTULO OITO
Foi o primeiro amor d'entre muitos amores,
Sendo ainda a primeira entre as Primeiras Obras.
Assim o manuscrito; assim suas manobras,
Cujo registo fiz dos juvenis humores.
Não para merecer insólitos louvores,
Sim porque d'esse amor já as únicas sobras.
Senão o coração, feito um ninho de cobras,
Fervilha a dar morada aos piores dissabores.
A partir do revés, percebi a permanência
Tão-só do sentimento em tão má experiência,
P'los versos que escrevi enquanto enamorado.
Penso que de tal modo eu vi isso frequente
Que na vida a poesia é a mim simplesmente
O mais comum lugar onde tenho passado.
* * *
CAPÍTULO NOVE
Sim, à beira do mar, qualquer um se quer poeta;
Talvez, à luz do luar, se ouse escrever versos...
Como fazer, porém, quando dias reversos
Chegam acinzentando a cidade concreta?
Mas se, em dias assim, mais e melhor se poeta
E a tristeza revela exacto os eus dispersos
Entendo que a poesia ora expanda universos,
Tornando a experiência humana mais completa.
Porque, se a vera beleza é um encantamento,
A emoção da tristeza é onde o sentimento
Manifesta a intenção do sentido profundo.
Muito embora pareça ainda mais hermética
É a prova dos nove a reinvenção poética:
Tudo o que, belo ou não, escrevo d'esse mundo.
* * *
CAPÍTULO DEZ
Concluo que ao início eu era alguém melhor
Do que, enfim, hoje sou... Por mais inusitado
Que pareça ao leitor, fiquei do lado errado
Nas batalhas da vida entre custo e valor.
O facto que me vejo é cada vez menor...
Pouco mais do que um cão; pouco menos que gado.
Pode isso parecer até muito engraçado,
Mas asseguro ser dos meus males o maior.
Convivo com tal falta em meu só coração,
Que já qualquer vitória é igual ilusão
E qualquer alegria hoje me soa falsa.
Se tudo o que aprendi foi a bem duvidar,
Minha insatisfação logo encontra lugar
N'essa esperança vã que toda gente encalça.
Belo Horizonte – 10 06 2001
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.