A Lágrima
Caminhou apressado como se as pernas tivessem vidas próprias, embora não tão vigorosas quanto a ânsia do pensamento. Achava que a sua vida havia se transformado em um calvário, rapidamente. Custara entender, e mais ainda a aceitar tal limitação que, achava, tinha surgido do nada. Do ocaso de sua caminhada talvez, mas... que caminhada?
Atravessara a rua Paissandú na certeza intuitiva de que os dois travestis que avistara em frente ao Cine Rex perseguiam-no. Não entendia como, mas a espinhosa trajetória na qual teria se lançado condenou seus anos de vida a uma composição de angústia e indignação. No ônibus uma sonolência estranha, um embargo na voz ao pagar a passagem, o estômago frio, um amargo na alma, um olhar para o nada. “Estou a deriva”. Pensamento sem cor, se é que exista isso.
“Deus, misericórdia!”. Uma imagem com a amargura desesperada daqueles que, por uma questão de existência procuram o perdão. Perdão de que? Havia pecado? O que havia ao certo era uma imagem de Lívia. A mesma Lívia das cartas misteriosas, da biblioteca, da admiração por Che. A gota de ânimo no já apagado semblante do jovem Isaac. Olhou para os lados e não conseguiu encontrar nenhum rastro de vida. De luz, talvez. Bela vida! Culpada por nada, lhe fez inocente de tudo.Transformara o pobre Isaac, o saudoso e esperançoso Isaac, em um portador de pensamentos opacos. Um cético andarilho da periferia de Teresina. Há tempos não conseguia encontrar medida de valor para a sua própria existência:
– Meu rapaz, você vai descer aonde? – o cobrador perguntou com uma certa preocupação pelo sono que o aplacou.
– Pare senhor, aqui já está bom! Na verdade havia passado até demais, mas tudo bem, foi o preço pago pela lembrança.
A imagem da mãe ainda era viva. O que dava para perceber era uma melhora significativa na convivência com o pai após tanto sofrimento. A mãe, zeladora de uma escola pública do bairro São Pedro, havia sido vitimada pelo câncer. Cigarros regados a uma boa dose de ansiedade.
Ainda havia uma esperança de ver o filho com o “diploma de doutor”. Isaac entendia que, de certa forma, a mentira fazia parte da sociedade. Em alguns casos ela até salva ou forja uma salvação. Necessitava-se de uma ilusão.
O pai era um professor aposentado, vivendo entre o salário minguado, aulas particulares, panelada apimentada e leituras em silêncio morno de Joyce. Pedagogo com certo domínio em Filosofia, ministrava aulas de História para alunos da Vila da Paz. Não era um homem operacional. Podia-se observar a ausência da alegria na casa. As dificuldades financeiras ainda eram intensas. As memórias cortavam suas vidas com a ausência da mãe. Com a morte, perderam-se muitas existências. A alegria já era um gesto inexistente. Em casa o banho consola Isaac. A água amacia sua alma e o faz chorar. Chora como se fosse proprietário de todas as lágrimas da história e como se cada lágrima expressasse uma história em particular.
– Não vai jantar filho? – perguntou o pai.
– Não pai, obrigado. – a resposta não o convenceu.
– Algum problema Isaac? – a pergunta foi feita com uma mágoa de si mesmo. A concepção de que seus fracassos haviam contribuído para tornar a vida de seu único filho mais penosa era certa.
– Não, apenas estou sem fome. Boa noite pai!
Não houve resposta. Nenhuma resposta conseguiria satisfazer o velho pai. Sentimentalismo, talvez. O que se sabia ao certo era que a dor da ausência transformava a destruição em uma proposta tentadora e que, infelizmente, ganhava uma resistência cada vez maior. Isaac pensava na figura inebriante que era Lívia e num longínquo passado onde a dor dos dias atuais poderia receber um paliativo. Um paliativo sim.
Outubro de 1987. Estudava, caminhava, sorria, ouvia Zé Ramalho: “...foi um tempo que o tempo não esquece...”. Sofrendo agora com as angústias da procura pelas leis que formavam a dinâmica da vida, cansado e sonolento, mergulhava no vazio como uma rendição plena.
O pai abriu a porta do quarto do jovem, lentamente. Observou o filho por alguns segundos. Tentou uma aproximação. Ia tocá-lo, evitou. Fez-se um nó no peito do velho homem. Retirou-se e foi dormir na certeza de que não conseguiria. Não era preciso tanta tristeza para que se pudesse mergulhar neste imenso vazio, dominador de tudo. No meio da caminhada surge uma mudança de idéia: a ordem da hora era continuar a leitura. No terraço a única visão era a de um muro de tijolos aparentes e um céu sem estrelas. Sem uma única estrela.
Naquele momento o acaso parecia ser a resposta para tantas e tão obscuras perguntas. Na verdade nem perguntas havia. O que havia era um buraco existencial assim como o grande céu. Sabia que deveria existir uma resposta para tudo. Ensinou isso a vida inteira. Certamente era assim que o aluno via as coisas: como um muro de tijolos aparentes. Procurou encontrar algum pensador que pudesse explicar a situação, mas aquele mesmo nó no peito impedia a busca. Conseguiu dar vazão para aquilo que mais reprimia. Baixou a cabeça, enxugou o rosto e olhou para o céu. Novamente tentou uma retirada. Surgiria um sol pela manhã, mas o muro ainda estaria lá.