<br />Victor Jerónimo
Portugal/Brasil
Aqueles três meses de ferias escolares eram sempre ansiados pela pequenada do meu tempo pelos chamados Lisboetas e onde muitos de nós íamos passar férias com os nossos avós noutra dimensão e onde a liberdade era quase uma constante.
Tudo começava com os meus pais fazendo a malas cheias de roupas e cestos vazios a devolver aos meus avós que na retorna viriam carregados de produtos cultivados na santa terra, ou de enchidos feitos por eles que tão bem sabiam semear ou criar animais.
Em dia aprazado lá íamos carregados de malas e cestos apanhar o autocarro da carreira 9 em direcção à estação de Santa Apolónia.
Aqui havia as bichas intermináveis nas bilheteiras com sacos, malas, cestos, garrafões tudo à mistura propriedade dos viajantes que ansiavam por serem os primeiros a entrarem no comboio e apanharem o lugar que todos julgavam mais confortável na sua imaginação.
Quando chegava a nossa vez o pai falava pro bilheteiro: "três de 3ª classe para o Fundão". E lá abalávamos com as pesadas malas quase em correria para a gare para apanharmos o comboio com duas horas de antecedência da hora da partida, este já com muita gente ocupando os seus melhores lugares, que são aqueles no meio da carruagem e onde o ponto de gravidade é menor e não balança tanto.
As carruagens eram de madeira com bancos corridos e portas nas extremidades, por fora havia um degrau a todo o comprimento da carruagem por onde o revisor passava de compartimento em compartimento para picar os bilhetes.
Cada carruagem tinha uma placa de madeira que mencionava o destino, pois quando chegávamos ao Entroncamento havia carruagens que se iriam separar, umas com destino à Guarda, outras para o Porto. Era a forma de economizar na época, no aproveitamento de um único comboio que a meio da viagem se partia em vários para outros destinos.
Ocupávamos então os lugares que o meu pai achava serem os melhores. A mãe tirava uma manta da mala para colocar no banco e tornar mais confortável a viagem de nove horas em bancos de madeira.
O pai arrumava as malas e os cestos que ocupavam quase a bagageira toda acima das nossas cabeças e quem viesse depois que se amanhasse.
Ali ficávamos esperando pela 23 horas, hora da partida, que podia não ser, do comboio que iria percorrer ronceiramente quase 300 km.
Entretanto o pai ficava à porta esperando encontrar alguém conhecido que fosse para o nosso compartimento e assim tornasse a viagem mais amena através de conversas e recordações.
Então e com sorte o comboio partia no horário certo, apitando e muito lentamente aos poucos ía ganhando velocidade.
Era então uma alegria sentir que finalmente iria para as ferias tão esperadas em casa dos meus avós.
O comboio parava em toda as estações e apeadeiros, saíam volumes, entravam volumes, numa azafama constante de quem viaja “quase com a casa às costas” pois havia os que queriam mostrar que não eram tão pobres assim.
Quando o comboio chegava ao Entroncamento ficava parado uma hora nessa estação para mudar de maquina eléctrica para maquina a carvão e conforme o comprimento deste levava uma maquina à frente e outra atrás pois a partir desta estação iríamos percorrer muitas subidas.
Quando finalmente partíamos no meio de muita fumarada, entravamos na linha de sentido único que nos levaria ao Fundão. Aqui, mais paragens intermináveis em estações para aguardar o comboio que vinha em sentido inverso e muitas vezes atrasado ou então esperar um senhor importante que se tinha atrasado.
Viajar nesta linha da Beira Baixa é contemplar uma bela paisagem que serpenteia pelas margens do Rio Tejo acima bordejando as suas águas.
Num comboio antigo com luz quase inexistente e em noite de luar a minha atenção prendia-se nos reflexos da lua nas suas águas que distraíam a minha mente ansiosa em chegar ao destino.
As conversas no compartimento diminuíam vencidas pelo cansaço e sono que a noite nos impunha e o comboio lá seguia ronceiro parando nas intermináveis estações e apeadeiros.
Lá para as tantas a porta do compartimento era aberta pelo revisor que pedia os nossos bilhetes, examinava-os cuidadosamente, não fossem estes falsificados, picava-os e devolvia-nos muitas vezes sem um boa noite sequer. Lembro-me de um revisor o Sr. Paginha um senhor careca e muito simpático que quando fazia essa viagem demorava mais tempo a falar com o meu pai e em geral com os restantes passageiros. Homem evangélico preocupava-se em transmitir-nos palavras de amor e fé.
Em Vila Velha de Rodão o comboio abandonava definitivamente o Tejo para começar a sua escalada em direção a Castelo Branco. O dia já começava a despontar e os olhos a clarear para mais um dia. O dia tão esperado da chegada.
Até Castelo Branco muitas vezes o comboio não conseguia vencer as subidas e lá ficávamos parados à espera que outra maquina chegasse e nos empurrasse em direção ao nosso destino.
Quando isso acontecia era o aproveitar para sairmos do comboio, esticar as pernas ou colher alguma fruta saborosa à beira da linha.
Finalmente Castelo Branco, capital da Beira Baixa, a partir daqui era o contornar interminável da Serra da Gardunha onde o comboio segue interminavelmente por aldeias e aldeias, até chegar ao Fundão.
Finalmente depois de 12 ou 14 horas, com horários que nunca eram cumpridos, chegávamos ao nosso destino, Fundão, capital da cereja, da Cova da Beira e de um dos vales mais férteis de Portugal, que tem como paisagem ao sul a Serra da Gardunha e ao Norte a Serra da Estrela.
Havíamos chegado e minhas ansiadas ferias estavam a começar.
12.Jul.2006
Victor Jeronimo
(Portugal/Brasil)