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Histórias do nº 5 - "Maria Augusta"

 
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Cinco. Sempre tive um fascínio pelo número cinco, vá-se lá saber porquê. Desde criança que, e sempre que era solicitada a dizer um número (nas rifas de quermesse, por exemplo), lá vinha, invariavelmente o número cinco. Não raras vezes minha mãe me dizia: “filha, escolhe outro número…”. Mas não, queria, porque queria o cinco. Era uma espécie de número mágico onde tudo podia acontecer. Cinco os sentidos, cinco os Continentes, cinco os dedos em cada mão, em cada pé. Cinco os naperons que enfeitavam a cozinha da minha meninice, cinco os lugares do carro, as divisões da casa onde morava. Cinco e ponto final!

Era um bairro pobre, de habitações que hoje em dia se chamariam de sociais, situado no limite oeste da nossa casa, construído por volta dos anos sessenta, quando o êxodo rural se acentuou e, dos diferentes pontos do país, chegaram à cintura da grande cidade, famílias inteiras de fracas posses. As fábricas – do sabão, do ferro, do arroz, da tecelagem -, as linhas de montagem e o trabalho em série absorviam mão de obra não qualificada, em sistema de rotatividade de horários. Trabalhava-se vinte e quatro horas por dia, o que, obviamente, impunha períodos de descanso diurno a quem por ali ganhava o sustento.

Maria Augusta habitava o número cinco, um exíguo “T1”, sem casa de banho. As necessidades fisiológicas eram satisfeitas com recurso a uma pia, ao canto da cozinha, circundada por uma espécie de cortinado. Os banhos semanais realizavam-se ali mesmo, num alguidar de menos de cinquenta centímetros de diâmetro em folha de zinco. Em alternativa, os balneários públicos, distantes de cerca de três quilómetros e meio e pagos. Nos dias de Inverno, a higiene fora de portas não atraía os demais e, malgrado as condições precárias e sempre permanentes do número cinco, Maria Augusta e a sua prole revezavam-se na guarda da cortina (amovível) para que, e com alguma dignidade, pudessem tomar o seu banho semanal.

Mulher quarentona, gorda, grande, enorme, de voz estridente a encher a casa e o bairro do cimo do seu metro e oitenta, à beleza dissera não. Os seus chamamentos pelos filhos corriam pela encosta, desciam até ao rio, atravessavam os carreiros das formigas em que Jeremias e Afonso consumiam os dias, ora arrancando-lhe asas, ora colocando pequenos obstáculos para que as coitadas não conseguissem avançar. Quando não as esborrachavam propositadamente só para lhe verem a cor dos intestinos…

Manuela e Rosália, essas, ainda que adolescentes, já aprendiam um ofício: ambas “andavam à costura”, uma, a mais nova, com a modista D. Lucrécia e a outra, com o Senhor Arcanjo, alfaiate.

Maria Augusta era a “generala” de serviço. Mandava e desmandava, gritava e vociferava, obrigando filhos e marido ao carrego das águas da fonte próxima, em latas de tinta, nalguns casos maiores do que a distância das mãos ao chão, de quem as transportava. Em alternativa, usava-se a canga, um varapau de cerca de oitenta centímetros, extremado com duas correntes e dois ganchos, onde as ditas asas das latas metálicas se suspendiam.

Pé aqui, pé acolá, trôpego e vergado ao peso, Gervásio Quintela, de metro e meio mal medidos (coisa menos coisa), quando não estava na fábrica, ocupava os dias, as horas e os minutos em que o corpo lhe pedia descanso, em idas e vindas sucessivas afim de encher o tanque, recolher água para a pequena horta, para a pia, para os gastos infindáveis do dia a dia daquela família. Maria Augusta, refastelada na cadeira alentejana já esburacada, impunha o ritmo da demanda, mês após mês, ano após ano, com um sorriso maquiavélico emoldurado pela sombra do bigode (buço, que nada, bigode mesmo …). No bairro todos sabiam quem usava calças lá em casa. Fazia-se chacota, gozava-se o prato, lentamente, nas reuniões de homens, tal se chupavam os molhos dos caracóis apanhados na rigueira das águas escorridas do Mato do Convento.

Gervásio encolhia-se ainda mais, metia-se por dentro da sua própria casca, engolia a saliva e a mágoa, amaldiçoando o dia em que nascera nu, careca, sem dentes e sem vontade própria. É certo que andava vestido, tinha cabelos (ralos, mas tinha), tinha dentes (já lhe começavam a cair, mas tinha). Porque porra de destino nunca se apessoara dele a vontade de fazer frente aquela a quem um dia, perante o Padre Maurício, no Alentejo que o vira nascer, jurara fidelidade e respeito? E não lhe tinha ela jurado coisa igual???

Neste estado d’alma os dias iam dando lugar às noites, aquelas em que quase adormecia à frente da linha de montagem, a colar as caixas de sabão Clarim. Um dia foi por um triz … o corpo pendulou e quase tombou na mesa de trabalho. Valeu-lhe a voz do camarada de bancada “Gervásio… home essa… vossemecê tá a dormir, ou quê?”… Estava, estava a dormir em pé! E se lhe fosse dado escolher, dormiria o sono dos justos para sempre.
Farto! Farto da linha de montagem e dos carregos da água. Farto da voz de Maria Augusta e da chacota dos vizinhos … Farto da canga que era o seu próprio casamento!

Era Domingo, dia dos banhos semanais. Naquele dia, Maria Augusta acordou virada do avesso. Não, não seguraria mais o cortinado, que tomassem banho nos balneários, que tomassem como quisessem. Com ela não contariam. Gervásio magicou a solução. Foi ao vizinho do lado, um serralheiro de profissão, pediu um escadote, uns camarões, um arame, um martelo e voltou decidido a acabar com a confusão. Suspenderia o cortinado e o assunto estava resolvido. Pensava ele!!! Deu início aos trabalhos, com esforço. O corpo pequeno varejava no topo dos cinco degraus – o suficiente para chegar ao tecto baixo, onde Maria Augusta tocava sem qualquer dificuldade com as palmas das mãos. As raparigas ainda dormiam no divã, os rapazolas já andam pelo bairro em algazarras e gritarias infernais, montados num cavalo de pau: “Eh toiro, eh toiro lindo… eh bicho, eh toiro …” em lides de toureio aprendidas nas lezírias ali ao lado …

- Maria Augusta, ó mulher, “assegura-me" aqui o escadote, não vá o magano “trocer” as patas e um homem cair… vá lá, mulher, “assegura-me" aqui…

Maria Augusta, do género “nem lá vou nem faço força”, esboçou um sorriso trocista, abeirou-se do escadote e, ao inviés do segurar, encostou o corpo anafado ao dito. Gervásio já se via estatelado no chão. Pediu de novo:
- … mulher, faz o que te digo, “assegura o escadote…ajuda-me lá, mulher”. Maria Augusta, encheu-o de mimos:
- Não prestas para nada, não me serves para nada, anão dum corno! Eras bom era para o circo, para o circo da Feira d’Outubro…

Naquele ensejo, Gervásio não ouviu mais nada, não pensou em mais nada. Relâmpagos e trovões assolaram-lhe o corpo, varejaram-lhe a mente. O martelo que segurava na mão, saiu disparado na direcção da cabeça de Maria Augusta, atingindo-lhe um olho. Por sorte, por sorte apenas, não lho vazou. Um edema descomunal ocupava-lhe agora quase a face esquerda toda. O silêncio tinha a cor do alcatrão que ainda não chegara à aldeia.

- O que foi isso, ó vizinha? Olhe que está feio, já foi ao hospital? Como é que isso aconteceu? Ó mulher…

Ninguém suspeitaria de Gervásio. Jamais! Gervásio não tinha coluna vertebral, era invertebrado e acéfalo. Sem vontade própria!!!

- Escorreguei, Senhor Jaime, escorreguei … ali na horta. Bati na borda do tanque, bem vê …

Gervásio encarou-a de frente. Encarou os demais e, numa voz que nunca ninguém tinha ouvido por aquelas bandas, apenas disse:
- “Olha o martelo …”

Desde esse dia as latas não mais bateram o chão térreo do caminho da fonte, nem sequer por ali se ouviu a despropósito a voz da generala. Gervásio cresceu três palmos … (ou seria que Maria Augusta havia minguado???). Como nos contos de fadas … viveram juntos e foram felizes para sempre!

in Colectânia "Contos de Mulheres" ©


MT.ATENÇÃO:CÓPIAS TOTAIS OU PARCIAIS EM BLOGS OU AFINS SÓ C/AUTORIZAÇÃO EXPRESSA

 
Autor
Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 18/02/2008 11:35  Atualizado: 18/02/2008 11:35
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Histórias do nº 5 - "Maria Augusta"

Gostei imenso do texto! Abençoado martelo! Sou totalmente contra a violência, mas neste caso... abençoado martelo!

Beijo


Enviado por Tópico
Tália
Publicado: 18/02/2008 22:50  Atualizado: 18/02/2008 22:50
Colaborador
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Localidade: Lisboa
Mensagens: 2489
 Re: Histórias do nº 5 - "Maria Augusta"
Parabéns por mais este conto... uma colectânia muito boa

Beijos