O Padre Maia guardou uns segundos de silêncio, abençoou os fieis ao mesmo tempo que repetia a habitual despedida, “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”.
Fechou a Bíblia encadernada a couro encarnado pousada sobre o altar e encaminhou-se para a sacristia. Os seus paroquianos que tinham assistido à missa, começaram a sair da igreja. Cá fora juntaram-se em pequenos grupos, que rapidamente retomavam as conversas interrompidas pelo ofício vespertino.
O sol ainda ia alto, fazia calor e a sombra projectada pelas oliveiras e pelos ciprestes do adro davam conforto aos corpos suados. Ali ao fundo, alguns homens discutiam futebol, falavam do último jogo do Benfica que voltara a perder, desta vez na Madeira, mais além, um grupo de raparigas trocava confidências sobre os namorados, aqui perto umas beatas já idosas, cochichavam sobre os rumores que davam como certo, mais um par de cornos para o Amílcar Padeiro, desta vez a mulher andaria com um tipo da Guarda Republicana, que era novo no posto.
No ambiente fresco e obscurecido da sacristia, o Padre Maia tirou os paramentos, dobrou-os cuidadosamente e arrumou tudo no armário. Penteou-se ao espelho, compôs a fralda da camisa azul de manga curta, pegou na pasta e saiu.
Ao chegar ao seu escritório olhou para o velho relógio de parede. Já passava das sete da tarde e o calor continuava sufocante. Dispôs-se a ler mais umas páginas de “O último papa” um livro que falava da vida no Vaticano e das lutas pelo poder que se travavam nos seus corredores. Estavam na moda as novelas históricas, onde a Igreja era frequentemente atacada, principalmente o Vaticano, que parecia ser povoada por monstros malignos, na pena desses escribas.
- É sempre a mesma conversa, Jesus era casado, teve filhos com a Maria Madalena, Judas afinal era dos bons, o João Baptista é que era o Mestre, que mais estes tipos irão inventar! – Falava para si o padre, enquanto procurava o marcador entre as páginas.
Algum tempo depois a Conceição, sua governanta, apareceu à porta do gabinete e repetiu o de sempre, “ o jantar está servido, Sr. Padre”.
- Obrigado Conceição.
Fechou o livro, pousou os óculos sobre ele e foi para a sala de jantar. A mesa estava posta apenas para si, a Conceição teimava em cear na cozinha, apesar de ele ter insistido várias vezes para que lhe fizesse companhia na sala.
- Não Sr. Padre. O senhor tem o tempo da refeição para pensar e eu tenho outros afazeres, nem iria comer tranquila.
A Conceição devia andar pelos setenta anos e era sua governanta há mais de vinte. Viera consigo de Pinhel, onde a Conceição já era sua governanta, depois de ter chegado aos ouvidos do bispo um falatório acerca do padre Maia e da antiga empregada.
Enquanto comia a sopa, pensou mais uma vez na Celeste, a doce Celeste que quase o fez virar as costas à Igreja.
O seu envolvimento durara poucos meses, ele era um jovem padre, tinha sido ordenado três ou quatro anos antes, quando a contratou para criada externa. Já nem estava certo se a tinha procurado ou se ela lá tinha ido oferecer-se.
Aos poucos, a confiança entre eles tinha solidificado e nascera uma paixão que em breve a levava a passar algumas noites no passal.
Estas coisas acabam sempre por se saber e os bispos têm muitos olhos e ouvidos. Alguém tinha ido com o conto, ele foi chamado à sua presença, tiveram uma conversa franca, sem recriminações, nem arrependimentos. O bispo propôs-lhe passar algumas semanas de reflexão no Seminário de Évora e prometeu-lhe que dariam um futuro digno à rapariga, na condição de ele a esquecer e não a tentar encontrar.
Acabou por concordar e quando regressou à sua paróquia, encontrou lá a Conceição a dirigir a residência paroquial.
Rapidamente percebeu que era uma mulher com um certo nível cultural e que devia encerrar um segredo qualquer, mas nem em confissão se abria. “Curioso, ela nem sequer é muito religiosa. Missa só aos domingos e nem sempre”.
Enquanto a sua velha colaboradora pousava uma travessa de bacalhau cozido e hortaliça fumegante, pensou o pouco que sabia dela ao cabo de tantos anos de convivência. O mesmo se passava com a Celeste, nunca soube nada dela, de onde viera, para onde fora enviada.
Parece que ainda estava a ver a Celeste com o longo cabelo negro apanhado num “puxo”, olhos grandes e escuros, boca bem desenhada e lábios carnudos. O corpo era forte, mas bem torneado, como só as moças do campo tem.
- Isso são coisas do passado, nem sei porque me lembro disto, já há-de estar casada, se calhar já tem netos. Já não se lembra de mim…
Acabou o jantar concentrando a atenção nas notícias do telejornal, tomou o café e foi para o centro paroquial, onde iria presidir a uma reunião da Fábrica da Igreja. Nessa noite dormiu sobressaltado e por várias vezes acordou com a sua antiga criada no pensamento.
Uma semana depois, estava no seu escritório a ler umas actas antigas das “Memórias Paroquiais” quando ouviu a campainha da porta. Passados alguns segundos a campainha voltou a tocar, levantou-se e foi atender. À porta estava uma senhora com um bebé ao colo, que lhe perguntou pela D. Conceição Andrade.
- Ela deve estar para o quintal. Faz favor de entrar e esperar um momento, que eu vou chamá-la.
Acto contínuo atravessou a cozinha, abriu a porta das traseiras e chamou a Conceição que lavava roupa no tanque.
- Conceição, está no átrio uma senhora que quer falar consigo.
- Uma senhora?
- Sim, com um bebé ao colo.
- Já vou, já vou – e limpava as mãos ao avental enquanto subia as escadas para a cozinha.
O Padre Maia voltou para o seu escritório sem deixar de passar pelo átrio e dizer à visitante que a Conceição estava a chegar.
Pela primeira vez deu atenção àquele rosto. As feições não lhe eram desconhecidas e foi a pensar nisso que retomou a leitura das actas. Instantes depois desistiu, porque o pensamento voava em círculos, cada vez mais amplos, qual falcão em busca da presa.
- Dá licença Sr. Padre? – Interrompeu a Conceição, da porta.
- Diga, Conceição.
- Eu… hum… eu, queria, hum… Não sei como dizer-lhe.
- Mas diga senhora, diga. Passou-se alguma coisa?
- Não! Quer dizer… sim. Passou. Aquela senhora que está lá fora é minha filha.
- Você tem uma filha? Não sabia, nunca me tinha dito nada!
- Pois não…
- Mas há algum problema, Conceição?
- Não Sr. Padre, mas ela quer cumprimentá-lo e mostrar-lhe o bebé.
- Então, é preciso ficar assim atrapalhada por causa disso? Mande entrar a sua filha, ande lá.
- Deus me valha, Deus me valha!
Saiu do aposento, regressando de imediato com a filha e a criança ao colo. O Padre Maia inclinou-se para poder apreciar o bebé que não teria mais de cinco ou seis meses e sorriu para ambas.
- Gracias por me receber e à mi nieto.
- A senhora esteve em Espanha muito tempo?
- Si, vivo em Espanha à mas de vinte anos, por isso hablo mas Espanhol que Português.
- E está de visita a Portugal ou veio para ficar?
- Vim tão solo mostrar mi nieto a mi madre e me vou mañana a Granada. Usted não me conhece, Cura?
- Não… bem, a sua cara não me é estranha, mas… Virgem Santíssima, tu… a Celeste!!! Tu és a Celeste!
- Por supuesto, Cura, eu sou a Celeste, se recuerda de mi.
- Como não… Assim, com o cabelo louro, já se passaram tantos anos. Casaste, tiveste filhos. Eu… Eu continuei com a Igreja.
- Si, casei há oito anos.
- Mas então, se esse bebé é teu neto, como é…
- Si, mi nieto, pero también tu nieto, hombre!
- Hum…
- Ai Jesus… - gemeu a Conceição.
- Este niño es hijo de nostra hija, Cura!