O meu menino tem olhos cor de avelã e cabelo de palha amarelo escuro. Cheira a canela e a noz-moscada e nem eu sei como esse cheiro é o dele, mas tenho a certeza que o é, pois sinto o aroma entranhar-se em mim de cada vez que o abraço. Quando passeamos, ele dá-me a mão energicamente e vai saltitando ao meu ritmo. São bons esses momentos, em que ambos navegamos em histórias imaginárias (de banda desenhada, mamã, por favor - isto diz ele quando lhe pergunto se quer que lhe leia uma história). São momentos nossos, em que nem o pai entra.
São? Não, já não são... Deixaram de o ser a partir do momento em que entrámos de mãos dadas naquele local proibido. De mãos dadas, mas sem a energia do costume. A energia que já lhe faltava há algum tempo. Os corredores eram intermináveis e revelavam a uma mistura de medicamentos que tornavam o ar irrespirável. O meu menino ia olhando, curioso, para todos os lados. E ia vendo, em silêncio, os outros meninos que por ali estavam. Sussurrava (mamã, estes meninos não têm cabelo? não, querido, estavam com muito calor e por isso cortaram o cabelo. mamã, mas eles parecem tão brancos, parecem os meninos da banda desenhada a preto e branco que tu lês à noite...não sabia que havia meninos a preto e branco. há, querido, Deus criou meninos de muitas cores para não serem todos iguais.). E eu gelava, mas mantive o ritmo firme, e as pernas firmes, mesmo quando estas quiseram desabar sob o peso da confirmação da médica (ele tem de ser internado, para tratamentos. duração? logo se vê como ele reage). Agarrei-me ao meu menino e sorri para ele (vais ver, é como ir de férias. estaremos sempre aqui, ou eu ou o papá, trazemos-te livros e brinquedos). E agarrei-me ainda mais, até ter mesmo de o largar.
Chegada a casa, gritei e uivei de dor. Zanguei-me com Deus. Lembrei-me ironicamente dos textos dos velhos responsos de semana santa que minha mãe recitava em voz alta à noite - vede se existe alguma dor semelhante à minha dor. Dor lancinante, sufocante. Sei que dava todos os anos da minha vida para acrescentar alguns segundos à do meu menino. Sei que só queria morrer...
Perdi a noção do tempo, já não o meço. O meu tempo parou no dia em que, depois de percorrer os corredores já tão familiares, cheguei por fim ao quarto do meu menino e entrei. E o meu coração parou, pois o meu menino já não era o meu menino. Debaixo da bata azul clara igual a todas as outras estava um menino a preto e branco, sem cheiro nem cabelo, baço e de olhar vidrado, igual a todos os outros.