Lá estava ele, esperando-me sabe-se lá há quantos anos. Acumulando poeira em cima de poeira, esquecido numa estante escura por todas as bibliotecárias e faxineiras que por ali passaram nos seus longos anos de esquecimento. Um livro verde, de capa robusta com ornamentos no estilo art nouveau. Era o livro mais bonito que eu já tinha visto, e até hoje não sei como o encontrei. Acenava pra mim sobre uma estante alta, em cima de outros livros, quando vi apenas a ponta de sua capa. Era março de 1935, e desde então, eu nunca mais me esqueceria desta data. Abri-o, ou ele abriu-se em minhas mãos, jamais saberei, e o seu conteúdo abriu-me os mesmos olhos que outras pessoas e outros livros, por sua vez, haviam fechado.
Não era um livro de fábulas, embora parecesse. Pois narrava toda a história da humanidade do ponto de vista de sua busca pelo imaterial, pelo transcendente, pelo divino. A jornada humana em busca de sonhos. Pois desde que o homem da caverna sonhou como o seu amigo falecido, e passou a enterrar os seus junto a flores e oferendas, passando então por revelações de profetas, visões, religiões organizadas, esoterismo, ocultismo, magia... que o homem tem buscado algo melhor e maior do que aquilo que ele vê na frente dos seus olhos. O livro conta que a humanidade nunca acreditou no que viu diante de si, mas sempre suspeitou de algo além. E isto nos tem movido. A ciência moderna nasceu da alquimia, da astrologia, da magia. E grandes e geniais cientistas que mudaram a história da humanidade não só exploraram e estudaram esse conhecimento ocultos, como eram de fato verdadeiros alquimistas e magos, no verdadeiro sentido da palavra. Somos órfãos, em busca de algo que perdemos. Os homens não puderam voar por si mesmos aos céus, na busca de seu lar. Mas criou máquinas que fizessem isso por ele. Os dirigíveis, os balões, e mesmo os aviões estão ai, para ninguém duvidar.
O livro mostrava a saga de cada povo na busca da alma. Os seus rituais, lendas e deuses. As suas crenças puras. As suas esperanças verdadeiras. A verdadeira mensagem do cristianismo primitivo, antes de ser contaminado pela esperteza e conveniência dos romanos. A verdadeira religião egípcia, livre das lendas e das crenças populares. A vida de siddartha Gautama e sua febril busca por iluminação. Os espíritos mensageiros, fadas, anjos ou extraterrestres, que sempre trouxeram uma mensagem e um aceno, dizendo: Olhe direito! E percebi que no fim de tudo, todos buscavam a mesma coisa. Uma porta, uma janela para a eternidade. Isso é o que une todas as filosofias e todas as religiões. Os homens de todas as raças e costumes. A porta tão falada, estreita ou não. O portão guardado por um cão de três cabeças, ou por um certo barqueiro. A porta de São Pedro, ou os pórticos de Isis. Não importa, tudo sempre foi sobre uma janela. Algo que nos devolvesse a visão de um paraíso perdido, que nos devolvesse ao nosso lar, à nossa casa. Esteja eu temporariamente no Egito, na Índia, na Inglaterra, nas Américas... tudo é sobre uma janela.
E ali lendo, encontrei algo contemporâneo a mim. Algo não tão distante e nem tão impalpável para alguém que cresceu numa região que começava a se industrializar, e que julgava você pelo tanto que era capaz de produzir em matéria.
Essa parte do livro falava sobre uma tribo indígena do sul do Chile. Próximo à terra do fogo, rodeada, se não, protegida, por montanhas e vales misteriosos e desolados. Era naquela bela região americana, longe de todos os progressos tecnológicos e científicos da minha época, que vivia o material humano da tribo. E assim viviam por escolha própria! Pois o governo oferecia ajuda e amparo, mas eles optaram por se isolar. Mesmo sabendo ler e escrever escolheram a cultura milenar de sua tribo, a despeito da cultura tradicional da civilização ocidental. Dessa forma, deixaram crescer as suas crianças, conhecendo o mundo lá fora, sem, contudo, viver nele.
O livro narrava de forma lúdica o estilo de vida dos nativos, a sua relação com os espíritos da natureza e com o sobrenatural. Mas o que chamou a minha atenção, fora a observação conduzida por seu autor, e o objetivo principal do livro, que apontava a relação desses indígenas com a morte e com a velhice. Para ser mais conciso, havia relatos e pesquisas de grandes naturalistas e antropólogos, que afirmavam categoricamente, que os seus nativos só morriam de velhice, e em idade bastante avançada! Ou seja, não pereciam jamais por doenças! Claro, o autor deixava claro que muitas pesquisas apontavam para os benefícios do clima e da alimentação deles, baseada, sobretudo, em peixes, além do estilo de vida sóbrio, responsável por tal fenômeno. Mas também, o autor deixava claro que os cientistas ignoravam completamente o que diziam os próprios índios, e as tradições de seu povo, referentes ao seu contato com um mundo mais, por assim dizer, imaterial.
E era aí que o livro se tornava realmente revelador. Dizia-se que quando alguém adoecia para morrer, o Xamã acordava-os do sono profundo em que caíam, antes de chegar o derradeiro momento. Embora me encantasse com a história, cheia de minudência e detalhes, nunca fui muito de acreditar em lendas e contos, sobretudo os de um povo distante, e inclinados ao misticismo. É... o mundo realmente dá voltas!...
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