Arrisquei a quietude dos meus dias para abrigar uma alma perdida. Não sei nada do seu passado e tampouco se terá futuro, porém quis proporcionar-lhe um presente seguro, real e feliz.
Tinha serenidade de menino, aquele homem, olhar de quem precisa de colo de mãe, um abraço fraterno talvez. Que segredos habitam em seu coração?
Levei-o para o sótão, não sei se por acaso ou por lá guardar as minhas preciosidades (a janela é meu baú de estrelas, novas e antigas), me acalma aquele lugar. Consciente ou inconscientemente achei que o faria bem. Bati a poeira, abri todas as entradas de ar e armei uma cama velha, com colchão em condições mais joviais; fiz tudo para que ficasse confortável e se sentisse acolhido.
Depois de acomodá-lo, recolhi-me. Enquanto meu corpo descansava, minha cabeça e meu coração estavam em pé de guerra, um conflito que surgiu quando o encontrei mendigando em um dos Bairros mais ricos da cidade. Isso contrastou não somente a riqueza e a pobreza de uma sociedade notavelmente injustiçada pelas diferenças de classes, mas o contraste que, muitas vezes cega: o desumano; que faz homens, mulheres e crianças passarem despercebidos, arrastando-se pelo chão, como se fizessem parte dele.
Leonel, assim chamava-se o meu anjo sujo, lançou sobre mim uma inquietação por estar vagando naquelas ruas a declamar versos. Drummond, Pessoa, Quintana, Patativa... tudo ele declamava, olhando para o céu como se a sua plateia estivesse lá. Talvez esperasse apenas o sorriso dos poetas a comtemplar a sua obra. Foi assim, distraindo-me com ele que quase fui atropelada, nesse instante percebeu a casualidade que me confrontava, e lançou-se sobre mim. Poderia dizer-lhe que nada aconteceu, caro leitor, mas este caso, para mim, já é um acontecimento. Por quê? Não sei; apenas sinto.
Levantei-me antes das nove e lembrei que não comia há quase dez horas.
Oh, meu Deus, Leonel! Lembrei-me subitamente do meu abrigado. Meu coração ficou pequeno ao imaginar a fome que podia estar lhe consumindo. Corri para o sótão e deparei-me com ele debruçado na janela com Davi, meu gato de estimação.
- Gatos adoram o luar! É quando anoitece que se sentem plenos – disse ele.
Não sei quais olhos brilhavam mais, os de Leonel ou do meu gato, mais sei que os dois estavam misturados à noite, eram uma extensão do brilho das estrelas.
Então, disfarcei o meu encantamento e convidei-o para jantar, não tinha preparado nada, nem sabia direito o que tinha na geladeira. Resolvi improvisar uma macarronada, sempre que não sei o que fazer, faço macarronada.
Comemos em silêncio. Ele com o olhar perdido, pensamento distante. Eu, só sabia a direção do dele, aqueles olhos é que me alimentavam naquele momento. Queria saber mais daquela alma perdida... seus sonhos, pensamentos, motivos que o moviam. Porque será que vivia nas ruas? De repente ele me olhou e disse.
- Eu não vivo nas ruas.
- Mas como... quer dizer... não?
- Não. É que fiz uma promessa, um pacto pessoal.
- Que tipo de pacto? Como assim?
- Amanhã te conto essa história... obrigada pelo jantar, boa noite!
Dito isto, Leonel recolheu-se ao "seu quarto”, deixando a casa mais vazia e meu coração mais angustiado. Meu Deus, que homem sai por aí declamando poesias, todo mal vestido, sujo, à procura de sei lá o quê, por causa de um pacto pessoal? Só sei de três coisas: meu corpo lhe deve pela vida, minha alma pelos versos e meu coração pela noite doce e agradável.
E quando o dia amanheceu, meu coração estava mais leve, porém meu pensamento na tal promessa. Não quis acordá-lo, então fui direto preparar o café para o apetitoso segredo que me consumia. Leonel não demorou muito e quando sentou-se à mesa já estava quase tudo pronto.
- Café? Leite?, nervosamente falei.
- Bom dia!, disse ele com um sorriso sereno. Café!
- E então... passou bem a noite.
- Maravilhosamente, em companhia das estrelas e de Davi.
Rimos desconsertadamente. E ele completou:
- Inclusive ele me contou um segredo.
- Ah, tá bom... que segredo?
- Que você me ama!
Fiquei pálida, totalmente sem cor, mas mantive a postura.
- Como assim? Você está louco?
- Não. Estou apaixonado.
- Como se atreve? Mal me conhece.
- Chegamos ao ponto, minha querida. Somos vizinhos de frente há dois anos e você nunca olhou para mim. Já eu... conheço todos os seus passos, seus gostos e manias. Tentei ser notado, mas você nunca reparou ao seu redor, nunca teve tempo para o amor. Mas eu vim resgatar você. Provoquei um encontro “casual” por meio daquilo que mais lhe atrai: a poesia. E o meu pacto pessoal é fazer você descobrir o amor, de preferência por mim.
Não soube o que responder por alguns longos minutos. Aquilo tudo era surreal. A coisa mais inteligente que consegui falar foi:
- E como é que você pode acreditar em um gato?
Foi aí que Leonel desmancho sua cara de eterno apaixonado e caiu na gargalhada. Inevitável não rir também...
Então percebi que o amor é como um sorriso... quando você dá de cara com ele, é inevitável não sentir-se feliz.
Gilquele Gomes de Araújo
Iguatu/Ceará/Brasil
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