Crónicas : 

O testamento do filósofo-poeta

 
O testamento do filósofo-poeta
 

Atenção, meus caros leitores: o que se segue é tão-somente uma criação de uma personagem, especialmente quanto a seus humores; se a mais baixa pretensão, a mais suja vaidade, recheada de inúmeros elementos intelectuais seja de filosofia, seja de literatura, jogados todos de qualquer maneira de modo a formar um escudo intelectual para que passe a aparência de profundidade e discernimento, se é pura ficção, diria que, do contrário, a tremenda angústia de algum dia acharem meus textos, quer dizer, daqueles que já não gosto mais, é-me verdadeira. Não quanto ao grande público, porque isto é um exagero em grau pra ilustrar a vaidade do nosso amigo aqui representado, mas, sim, para amigos e parentes. Meus textos ruins? Não gosto deles, não nego. Mas também não os quero mandar embora.


"Ainda sou jovem, creio eu. Se não sou em espírito, ao menos de corpo tenho de ser. E de tão jovem que sou - em idade mesmo! - diria que, contrariamente ao que se pensa, ando bastante preocupado com a tal da dona morte... porque não faço ideia de quando ela há de me ceifar, se o fará o mais breve possível ou se me postergará mais tantos infindáveis anos de existência, preocupo-me não com o que há de haver para além dessa vida fenomênica; se é que há de haver alguma: questões metafísicas, pois, deixemos pra outrora. Ando mesmo preocupado é com o que pensarão de mim. Sim, por mais tosco que seja, é exatamente isso. Porque se morrer agora, o que sobrará de todo meus escritos em vida? Das minhas poesias, de todos meus textos que a tanto escrevi? Vai que morro em um dia qualquer desses e os descobrem! Estarei, assim, grandemente perdido! Gasto tanto esforço para os esconder do juízo alheio, tão severo e injusto, que tão-somente a ideia de alguém os descobrir de pronto e os expor ao todo público, sem qualquer conceito, sem qualquer critério que não seja o meu, arrepia-me imensamente. Pois imagine mesmo todas aquelas pessoas que já foram injustas comigo, se me leem o fundo da alma, ou até mesmo meus amores que andam a vagar por aí, se descobrem aquilo que escrevi, se se identificam: mas quanta vergonha hei de sentir! Ah, quanta agonia há só de pensar. Ora, ideias íntimas, porque são íntimas, escondem-se mesmo! Meus maiores peixes, escondo-os nas minhas águas cristalinas. E digo mais: não estou aqui nem mencionando, - mas agora já estou -, dos textos mal escritos, mal formulados, mal argumentados, dos versos de boteco mal rimados, das filosofias de esquina. Sei que os tenho, e sei muito bem. Entretanto, não gosto da ideia de jogá-los ao lixo como bem fazem inúmeros escritores... profissionais. Pois são parte de mim, quer dizer, daquilo que já fui - e, sim, gosto de lembrar daquilo que já era em tempo passado - é por isso que os guardo. Para lembrar e dar risadas escandalosas sempre algum dia: apenas por isso que não os desapareço da face da terra. Mas um imbecil qualquer que os achar, e se for imbecil o suficiente os vão achar todos absolutamente dignos de prestígio, vai querer os publicar sem ao menos me perguntar : "- Ei, você gosta desse aqui? Acha que merece?" - Ora, pois estarei morto! Não é claro? M-O-R-TO: sim! Mortinho da silva, sem qualquer possibilidade de resposta. E se escolher algum daqueles rabiscos que odeio imensamente, ah... como hei de ficar irado! Porque busco manter minha pretensa posição de filósofo, não posso dizer que, como espírito, apareceria-lhe como intuição empírica para atormentar vossa vida terrestre, mas como também sou poeta, diria que sim: ai daquele que publicar algum texto que não tenho afeição. Com igual força que odeio alguns de meus versos e ensaios, odiarei vossa pessoa e perseguirei-te para todo o sempre. Não obstante, algum de vocês leitores metidos a intelectuais, baseado em todos seus conhecimentos extensivos a respeito da matéria de literatura, bem poderia jogar em minha cara o caso do grande amigo Brás Cubas. Veja, pois, a história dele... morto, sem qualquer necessidade de sensibilidade e comprometimento com o que é material, vomitou-se completamente em seus escritos: expôs-se nu ao mundo, sem qualquer dó ou critério moral. E com tão recheio de ironia...! Assim poderiam esfregar-me a cara: o mesmo vai acontecer convosco, amigo filósofo-poeta, quando morreres não mais se importará se o que já escrevera é bom ou não; sem qualquer poder de interferência, terá de aceitá-los invariavelmente. Mas não adianta, enquanto viver, não aceito mesmo! Estou vivo, é isso: sinto o sangue quente correr entre as minhas veias, o coração a palpitar no ritmo da lira dos vinte anos e, mesmo que comprometido por diversas interferências em minha sensibilidade... todas de nível da razão, do que é intelectual, eu ainda existo! E vos diria mais, se me é tão assertórico, se sou ser, não posso ter qualquer coisa relativa ao não-ser, quer dizer, à morte. Portanto, se sou, temo verdadeiramente o destino que poderão dar ao que já pensei; se mudarei de opinião naquilo que é incerto para além dessa vida, resolvo eu lá! Penso é no agora. Bem... é isso! A solução é tão clara: basta que eu escreva então um manuscrito explicando apenas os textos que quero ver publicados; somente assim não terei de me preocupar e minha vontade terá certeza por realizada: pensarão bem de mim, no quanto fora genial no meu modo de escrever, em meus versos, no quanto sou consequente enquanto filósofo. Pois talvez um dos maiores medos humanos é ser de todo esquecido: a existência não se faz apenas como corpo e matéria, mas também de memória. Um homem só verdadeiramente morre quando se é esquecido; e se a morte é horrível, diria que pior ainda é ter-se por vivo no tempo como um tremendo escritor de absurdos, de baboseiras! Portanto, até o último segundo enquanto estiver tocando a "Cavalgada das Valquírias" de Wagner, até o último momento quando as valquírias estiverem carregando meu corpo despedaçado, quero ter a possibilidade de ter sido pensado bem, de ter sido intelectualmente frutífero, ao menos em alguns escritos. Mas... Mas quanta presunção.... Que sei eu?! Se não os mostro pra alguém, como poderia ter eu a mais suja, vaidosa e infame pretensão de achar que alguém vai se interessar pelo que fiz, que os vai gostar? Alguns deles bons? Rio-me! Mas é claro que são! Pois é apenas eu quem os avalio, como iria eu de contrariar-me? Ora, serei lembrado coisa alguma! Meus escritos, que sei deles? Sei apenas que todos serão verdadeiramente perdidos em barriga de traça, em areia de tempo."



 
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