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A Montanhesa - V Parte

 
A Montanhesa
Parte V

É neste tempo ainda conturbado que vamos encontrar a jovem montanhesa cuidando de ociosos afazeres necessários à sua sobrevivência e a da velha senhora, pastoreando, colhendo frutos e lenha. A velha senhora cada dia se prostrava mais na melancólica abstracção da realidade e definhava de olhar perdido no tempo.
Raras vezes mantinha com a sua protegida uma conversa coerente Os monólogos arrastavam-se no evo. A jovem, carinhosamente, com voz doce e meiga, tentava despertá-la desse acordado sono mental com um abraço ou na deposição inquieta da cabeça no regaço da sua "babuška". Por vezes, a velha senhora sorria e afagava os longos cabelos negros e desgrenhados da jovem com a mão trémula e exclamava - "AH! Estás aí" - para logo se afundar no pasmo.
Outras vezes, iniciava urna tagarelice, ouvida atentamente pela sua companheira que nunca a interrompia e, assim, decorriam as horas monótonas e os pachorrentos dias.
A jovem bem se inquietava, a princípio, deixá-la só, porém, a subsistência de ambas dependia disso e obrigavam-na a sair pela manhã.
Nessas saídas, uma escondida ânsia de total liberdade, fazia-a ignorar as perigos, errar nos montes, correndo e pulando muito próxima de sedentos abismos reclamando a sua quota de vítimas e cúmplices neste ardor de secreto suicídio. Era, assim, que as gentes a viam e, consequentemente, se persignavam assustadas, em mil fervorosos sinais religiosos e pagãos e maldições. Quando a jovem, ao longe, descortinava estes campónios estacava, indagando-os desafiadoramente muda, altiva, quieta, e, rodopiando subitamente, empreendia a fuga numa desenfreada corrida até ao lugar mais remoto e protector. Não se perturbava facilmente, mas a fuga era-lhe inata e comandada do seu mais íntimo. Já longe, ofegante e exausta, rindo loucamente, regressava ao casebre e aninhava-se junto da velha senhora. Mas, um dia, o destino, cioso desta aparente despreocupação e pressuposta liberdade, reservou-lhe preocupações e sofrimentos...
A manhã esmorecia na tarde quente desse dia sem história, quando, regressando ao casebre, colhia, despreocupada, flores e plantas. Quedou-se na clareira copada junto ao cristalino riacho que, tão límpido, lhe devolveu a imagem. Sorriu e acenou a si própria, traquina. Sentou-se e iniciou a sua coroação principesca com flores colhidas, mirando amiúde o resultado de tais enfeites. Ajeitou o comprido cabelo negro que se espraiou até aos ombros em cascata. Satisfeita com a transformação em ninfa, levantou-se e, em resolutas voltas e piruetas, qual talentosa bailarina, dançou gargalhando alto e recebendo o eco ritmado e a suave brisa, que se fazia sentir morna, esvoaçando os farrapos que cingiam a jovem e os seus cabelos revoltos. Para além do eco, a brisa trouxe consigo sons indistintos e confusos que, numa súbita pausa, fez parar o voltear em posição dolorosa. Escutou atenta...
Um relincho nervoso e um bater de cascos furioso soaram-lhe muito próximos. Outro relincho aflitivo trouxe-lhe a certeza da presença de algo. Pesadelos reavivaram-se na memória...
Fustigadores, horrorizaram-na, e, num gesto instintivo, levou as mãos às cicatrizes do peito. Encetou uma fuga desordenada, arriscando a queda nos abismos, mas desafiando imaginários cavaleiros a perseguirem-na temerariamente. Num declive, lançou-se numa fenda e atocou-se bem no fundo ajeitando a vegetação sobre ela e apagando vestígios. De músculos tensos e convulsionados pelo esforço e pelo medo, fundiu-se no solo, não ousando, sequer, respirar.
O tempo decorreu incerto...

Passaram-se horas até que se desvaneceram os efeitos do esforço e das emoções e a serenidade voltou sobre ela como um bálsamo retemperador. Lentamente, esgueirou-se do refúgio, ouvido bem atento, regressou para junto do riacho, e iniciou a recolha dos parcos haveres e provisões abandonados.
Outro relincho, dorido e inquieto, fê-la sobressaltar-se de novo, mas, desta vez, aguçou-lhe a curiosidade e venceu o medo. Estes resfolgar e o bater de cascos, agora bem nítidos e próximos, orientaram-na no espesso arvoredo. Irrompendo numa clareira, deparou-se-lhe, imponente, um garrano alvo sem mancha. selado e arreado, de crinas trançadas em cetim de cores branca e azul celeste Ao pressenti-la, tão perto, com upas enfurecidas, raspar de cascos, resfolgar espumado, e investidas ameaçadoras, tentava desencorajá-la a seguir, impedindo-lhe o caminho. Cavaleira experiente que fora, quedou-se dócil e murmurou palavras serenas, o que aquietou, um pouco, o animal. Estendeu a mão, num gesto lento, e chamou-o; hesitante e desconfiado, notando-se o tremor nos flancos, o garrano aproximou-se ainda ameaçador. O cavalo acercou-se e cheirou-a, aceitando, de seguida, o afago no focinho e pescoço. Murmurando incentivos e elogiando-lhe a beleza, a jovem continuou a afagar o cavalo e, passando aos flancos, deparou-os, horrorizada, ensanguentados assim como o lombo e sobre a sela. Inspeccionando, não detectou qualquer ferimento no animal que tenha gerado tanto derrame, apenas pequenos arranhões nas patas e flancos. Após a inspecção, pegou no cabrestante e tentou conduzi-lo para junto do riacho para o lavar desse sangue misturado de pó e suor, recebendo uma recusa determinada.
- Anda cavalinho... Anda, vou-te lavar e tratar. Anda... Vai...
Recebeu nova recusa e, pretendendo afastar-se e ver se o garrano a seguia, este empinou-se, relinchou, qual súplica, e empurrando-a com o focinho, mordiscou-lhe o ombro.
Confusa, questionou:
- Hé! Cavalinho, somos amigos, porque não vens...? Bem... Então, adeus...
Vou-me embora! Vens?...
Recebeu novo empurrão e nova mordiscada; em volteio e empino breves, e trotava numa certa direcção como a dizer-lhe: -"Segue-me!" - e, perante a estupefacção da jovem, resfolgava abanando as crinas e balançando a cauda. Cogitou a jovem:
- Que queres, cavalinho? Que te siga? Onde?
E seguiu-o na direcção pretendida pelo animal que, num trote lento, a guiou no matagal. Alguns metros mais e a visão súbita de um corpo caído, dobrado sobre si, e ensanguentado, a fez estremecer de horror.
- Um cavaleiro! - e dispôs-se a encetar nova fuga.
Porém, a inquietação do garrano e, numa melhor observação, espantada, notou que o cavaleiro não usava armas de qualquer tipo. Vestia vestes de tons variados de azul, entre o celeste e o ferrete. Condoída, e num esforço titânico, para a sua força de jovem, ele era pesado, virou-o de costas; seu peito estava manchado de sangue coagulado e profuso. Arrepiou-se e, num exaustivo afã, com troncos e ramos caídos, ligados entre si por liame, preparou uma maca arreando-a ao garrano. Arrastou, então, o corpo e depositou-o neste leito móvel e improvisado e, incitando o cavalo, encetou o regresso ao casebre.
A "Babuška" - pensou - saberia como tratar do cavaleiro...

Não distava muito o casebre , mas, neste terreno irregular, e o estado crítico do paciente, cada passo deveria ser medido com cautela e evitar o balançar violento da maca no seu penoso arrasto do cavaleiro, que ora gemia dolorosamente ora balbuciava palavras incoerentes das quais a jovem só entendeu "Fidelis" que pareceu avivar o andamento do garrano. Chegados ao pátio interior do casebre, a jovem correu para o seu interior e, aninhando-se no regaço da velha senhora, exclamou ofegante:
- Vem "Babuška"! Vem, depressa! Ele precisa de ti... Anda, vem "Babuška"!... – e puxava-lhe pelas mãos...
A velha "vještica" volveu o olhar perdido para a jovem e, com a mão trémula e sobressaltada, afagou-lhe os cabelos:
- Que tens meu "Lírio"? De que foges?
E, perante a insistência teimosa da jovem, levantou-se penosamente, murmurando:
- Pronto! Já vou...

O dia esbatia-se na tarde, mas a luminosidade exterior provocou-lhe a cegueira momentânea e ela interpôs uma mão entre o sol e a vista tentando enxergar, parada no portal.
Reposta, avançou para a maca e tocou o corpo estirado do cavaleiro e, subitamente, para surpresa e susto da jovem, gritou de lancinante angústia e revolta, ao mesmo tempo que, com o seu bordão ameaçava os fantasmas presentes, escorraçando-os:
- Malditos, vermes! Que lhe fizeram, desgraçados! Corja de assassinos...
Como ousaram tocar num "Senhor da Paz"?...
Ajoelhando, chorosa, auscultou a vida daquele corpo jacente e, frenética, vociferou para a atónita jovem, e num apelo feroz, ordenou:
- Depressa, ajuda-me! Ele vive! Essa corja não ceifou esta vida...
- Ajuda-me! – tentando soerguer sozinha o cavaleiro e, afagando-lhe a face lívida, limpando-a dos coágulos e sujidade, murmurou para ele:
- Não morras, cavaleiro! Não os deixes vencer-te, aqueles miseráveis.
- Vive, "Senhor da Paz"... - e, gritando para a jovem do novo - Lírio, ajuda-me a levá-lo para dentro! Vamos tratar dele... Vem...
Cuidadosamente, num esforço titânico, depositaram-no no catre e despiram-lhe as vestes ensanguentadas. As roupas removidos, a ferida no peito reabriu e o sangue jorrou de novo. A respiração débil e agitada, motivada pela perda de sangue, indiciava a urgência de estancar aquele fluxo sanguíneo. Os pulmões seriam congestionados e comprimidos pelo ar exterior, e a embolia surgiria mortal a qualquer momento. 0 cavaleiro apresentava a cor lívida e exangue e antevia-se, nas pálpebras semicerradas, as pupilas dilatadas. Delírios febris agitavam o seu corpo. Com compressas e pressão sobre a ferida, a velha "vještica" estancou o sangue. Aquecendo água e juntando-lhe folhas secas do plantas com propriedade medicinal, tão suas conhecidas, preparou uma infusão que aditivou a emplastros e lavaram ambas o tronco do cavaleiro retirando-lhe os coágulos e a sujidade colados.
Depois, prepararam uma ceia frugal e, durante a refeição, a jovem, impulsionada pela dúvida que fervilhava nos seu íntimo, inquiriu a velha senhora:
- "Babuška"! Que é um "Senhor da Paz"? Guerreiros?
- Sim! - retorquiu a velha senhora - os "Senhores da Paz" são cavaleiros que não fazem guerras. Eles interpõem-se entre as "Senhores da Guerra" separando as campos e mediando as tréguas e conflitos.

E, como exemplo, narrou a sua origem, quem fora, de onde viera, quem eram seu marido e seus filhos e porque se exilara. A jovem ouviu-a atentamente sem ousar interrompê-la.
- E tu meu "Lírio"? Nunca saberás quem és e donde vieste? Conseguirás, algum dia, explorar as sombras da tua mente e rasgar esse negro véu que te oculta a passado?
Um silêncio sepulcral inundou a casebre. Num doloroso esforço mental, a jovem tentou recordar-se do si; o nome, a família, os lugares... Mas em vão. O seu segredo continuava impenetrável... Sobrevieram as lágrimas.
- Não "Babuška"! Não me lembro de nada... - finalizou a jovem soluçando.
A velha senhora afagou a face da jovem e, maneando a cabeça num sinal de compreensão, acalmou a jovem:
- Não chores, "meu Lírio"! Não te atormentes à toa... Serás, simplesmente, o "meu Lírio"... A menina doce e afável que faz companhia a esta velha tonta...
Um gemido mais audível do ferido interrompeu-lhes o curso dos pensamentos; em estado crítico e febril, o cavaleiro digladiava-se com a morte.
- Nada mais posso fazer por ele! - afirmou a "vještica" - Mas... Tu sim minha doce Lírio. Desce ao povoado o procura a ajuda dos seus pares ou onde eles se encontrarem.
- Não! "Babuška"! Não!!! - gritou aterrada a jovem - Eles odeiam-nos! Não "Babuška"! Não irei... - rebelou-se angustiada a jovem.
- Tens de ir "meu Lírio" se queremos que ele sobreviva. Terás de descer ao povoado... É necessário que ele sobreviva...
- Não irei! - teimou a jovem
- A bala está alojada no seu peito. Ele piora a olhos vistos. Se não for assistido por um médico, ele morrerá decerto. A sua vida está agora nas tuas mãos, meu Lírio.
- Não posso... – gemendo, retorquiu a jovem, e fugiu para o exterior...

Pouco tempo depois, ouviu-se um bater de cascos e um grito de incitamento. A jovem vencera o asco e o medo e partira, galopando.
- Que Deus te acompanhe e proteja, meu Lírio! Traz ajuda depressa ou este cavaleiro morrerá - murmurou a velha senhora - Trota, célere... Mais que a Morte... A Morte espreita agoirenta e ávida...

A noite cerrou-se escura e enevoada.
Amazona e garrano lançaram-se temerariamente nos declives descendentes adivinhando mais o percurso que vendo. Na negritude da noite, os fantasmas perseguiram-nos, ainda benévolos, e por entre as árvores, uivavam indicando o sinuoso carmino e apressando a marcha. Tomara que não se humanizassem, malévolos. Diriam os mais afoitos que o vento soprava agreste, outros mais temerosos, que as abantesmas batiam as asas por entre os espectros do arvoredo.
Lírio sentia-se perdida nesta aventura nunca antes vivida. A masmorra nocturna envolvente prendia-a no medo, aterrorizando-a.
- Vamos "Fidelis" - incitou a jovem – Coragem!... - incentivou a amazona numa tentativa de esconjurar o terror. - YahI Yah! Vamos!...

Cerca de urna hora depois, a jovem avistou a povoação e, cansada assim como o garrano que, embora robusto, vacilava num trote fatigado, espumando e suando abundantemente, esporeou a montada quase exausta. Ao entrar na praça central, deserta em hora tardia, despertou a curiosidade o súbito bater de cascos a galope e, alguns residentes das casas em redor, espreitaram entre curiosos e incomodados. Alguns, mais afoitos, depararam incrédulos com as figuras recortadas da amazona desgrenhada e coberta de trapos e do cavalo resfolgando na serni-penumbra das luzes amarelo-frouxo das candeias que trespassavam a noite exterior.
Sustendo a marcha, a amazona, numa voz forte e impessoal, gritando, interpelou os presentes:
- Dizei-me onde encontrar os "Senhores da Paz!
Alguém, de entre o aglomerado curioso das gentes, gritou: - A "vještica"!.. . Ela é a "vještica!...
E os invectivos irromperam brutais de entre a massa populosa alastrando-se como chama devoradora. As pedras fluíram e atingiram amazona e garrano, que se empinou.
A amazona vacilou, mas manteve-se montada à custa da sua vontade de sobrevivência e raiva e, perante a populaça em motim e armada de varapaus e forcados, esporeou o garrano galopando em brida. A arruaça perseguia-os ululante.
A cavalgada alucinante rompeu o cerco de ódio.
Quase liberta do cerco, à amazona depara-se o vulto choroso de uma criança estatelada no solo, que a arruaça abandonou precipitada, e, por milagre, não a espezinhara.
Porém interpunha-se no caminho de fuga da amazona que, mesmo em pânico, discerniu suster a acossada cavalgada, desmontar desabrida e socorrê-la.
A criança, num gesto instintivo, agarrou-se frenética ao seu pescoço. Estacaram, os arruaceiros, estupefactos, mas ainda hostis, balançando os sentimentos entre o medo da "bruxa", a sua indecisão perante a sua atitude e a sua sede de presumida vingança.
A visão da jovem em atitude de desafio, corno fera acossada e progenitora, esfarrapada, desgrenhada, sangrando, segurando, protectora o menino contra si, era devastadora para os corações ignorantes.
A populaça recuou e, num momento, abriu alas a um jovem mancebo de porte distinto, acompanhado de uma senhoria e criados, que afastaram as gentes, pela demonstração de força armada, controlando-os.
O casal dirigiu-se à amazona, que parecia ir desfalecer a todo o momento; a jovem fidalga tomou dos seus braços a já aquietada criança e, inquirindo a multidão com o olhar, descortinou a mãe a quem chamou e lhe entregou o rebento.
O seu jovem esposo, amparava a amazona e reiniciaram a marcha inversa até ao solar sobranceiro da praça. Um criado segurou as rédeas do nervoso garrano e conduziu-o seguindo o cortejo. Silenciaram-se as gentes.
O fidalgo ordenou:
- Ide para vossas casas... Esta jovem está sob minha protecção!
Não ousaram contestar e regressaram, lentamente, cabisbaixos para as casas.. Até o ladrar dos cães se desvaneceu pouco a pouco. O silêncio e a calma reinaram, de novo, no povoado.
Já perto da entrada do solar, a amazona desfaleceu à emoção e aos ferimentos e foi levada em braços pelo jovem fidalgo para o interior onde, num quarto, e sobre um dossel, a depositou gentilmente.
A testa da jovem apresentava um golpe sanguinolento e violáceo. A sua face estava coberta de fios de sangue que escorreram do ferimento.
Chamadas as criadas, a jovem esposa do fidalgo comandou os preparativos para as ablações necessárias e o tratamento da amazona. Despiram-Ihe os farrapos e iniciaram a tarefa de cuidar desta pobre jovem vitrina da ignorância e malvadez dessa gente, também eles vítimas, desnorteadas e fanaticamente crédulas e vingativas.
No meio das ablações, a amazona acordou da sua letargia, e aflita, tentou evitar as atenções e levantar-se, dizendo:
- Tenho de ir... – mas impedida e exausta, rogou à fidalga - Por favor, deixai-me ir, senhora... É urgente Por favor, senhora... Tenho de ir...
Esta vã tentativa de se levantar prostrou-a de novo e os soluços começaram.
Com eles vieram as lágrimas.
- Tenho de ir... É urgente que encontre os "Senhores da Paz”. Obrigado por tudo, mas tenho de ir...
- Ficai Senhora! - disse a jovem esposa - eu enviarei alguém contactar os "Senhores da Paz". Descansai agora... Peço-vos – e, dirigindo-se a alguém que se aproximava da entrada, ordenou - Vai! Monta o alazão mais veloz e diz
- lhes que me venham visitar o mais urgente possível. Ide, peço-vos, rápido...
- Sim, Senhora! Voarei... - e o criado saiu correndo.
Pouco tempo depois ouviu-se um novo cavalgar a afastar-se na direcção do Sul.
- Que calamidade se avizinhava para os "Senhores da Paz" acorressem urgentemente? – cogitou a jovem fidalga - Quem era a desconhecida amazona e porque lhe chamariam as gentes "viještica"?
O amanhã muito próximo, traria as respostas, boas ou más, e que Deus os ajudasse a todos!
Saiu do quarto e juntou-se no salão a seu jovem esposo, que a beijou, e repousaram, sentados e enlaçados, sobre um sofá, neste imponente salão do solar, calados, pensativos e expectantes...
Rompeu a manhã violentamente quente e coberta de ondas sufocantes. A amazona dormitava solta quando foi bruscamente acordada pelo tropel de cavalaria entrando no pátio lajeado do solar.
Perdida, em leito aconchegado de cetim, olhou confusa em seu redor. Inquieta, semi-vestida de tule verde e branco entrelaçados. Os seus farrapos tinham-se volatilizado como, de um dia para outro, de montanhesa rude transformou-se numa bela princesa, Levantou-se dorida, mas, por gaiatice da sua jovem idade, mirou-se ao espelho e espantou-se.
- Seria ela, ali reflectida?
A imagem , por breves instantes, confirmou-lhe a verdade, mas interrompeu-a quando a porta do quarto se abriu e uma jovem entrou e a saudou, efusiva, beijando-a duplamente nas faces:
- Descansou bem, Lírio? – e, perante um aceno afirmativo, prosseguiu
- Os "Senhores da Paz" chegaram e esperam-na no salão grande. Mas não nos apressemos escusadamente. São cavalheiros e sabem esperar pelas damas. – gargalhou, piscando, travessa, seus olhos de jade.
Do seu guarda-roupa a jovem esposa dispôs à escolha da amazona vários trajes, dos mais femininos aos mais másculos, como um fato de montar, que despertou, de imediato, a preferência da amazona. Escolheu, assim, um fato castanho claro, uma camisa folhada de cetim rosa, e botas de couro castanho, um chapéu de feltro da mesma cor, empenado, e um pingalim. Nas botas, as esporas prateadas tiniram a cada passo. Ajudada pela jovem dama, penteou seu cabelo negro, que se espraiavam nas costas até aos rins, agora não desgrenhado, arrepanhou-o numa trança única, que lhe caía sobre o lado esquerdo, arrematado por urna fita de cetim rosa-escuro.
Coloriu as faces pálidas com um pouco de creme rosado, negando qualquer outro embelezamento.
- Está linda, Lírio! – afirmou a jovem anfitriã - Vamos descer e oferecer aos cavaleiros, que nos aguardam, sequiosos, as nossas belezas - gargalhou, matreira, piscando um olho a Lírio, - Vamos, Lírio!..
Deram as mãos, como se irmãs fossem, - eram já - guiou-a por corredores e escadarias do enorme solar e introduziram-se, sem anúncio, no salão onde os cavaleiros, de vestes de azul-céu e ferrete, se encontravam conversando.

Ao ouvi-las entrar, levantaram-se respeitosamente, cumprimentando-as, com inclinações ostensivas.
Com eles estava o anfitrião, também vestido de igual, que tomou a mão de Lírio, osculando-a, e a apresentou aos restantes cavaleiros. Depois, todos se sentaram à mesa onde desjejuaram rápido, em detrimento das iguarias postas.
- Apresento-vos, senhores, Lírio, de quem já conhecem parte da história que aqui vos trouxe. De seguida, iniciaremos a campanha para resgatar o nosso bom amigo lovan. Os preparativos já estão terminados, apenas nos resta iniciar a marcha.
Um dos cavaleiros, erguendo os olhos ao céu, afirmou peremptório:
- lovan, vive! Vamos!

E todos os cavaleiros e damas presentes lançaram uma oração muda, mas sentida.


Triste Poet@
(João Loureiro)

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Triste.Poeta
 
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