Corro entre cidades desertas em noites iluminadas por postes da modernização.
Fecho os olhos no que acho ser o frio do vento.
Fecho as cortinas e digo que está bem assim, um choro para adormecer em vez de uma melodia.
Os homens das gravatas pretas chegam em surpresa. Os homens das gravatas pretas chegam sempre.
Sentam-se na minha cama e pedem-me que tome conta de mim mesma.
Sentam-se de copos vermelhos nas mãos e cruzam as pernas.
Primeiro de tudo, diz um, explica-me todo o custo de um poste numa noite escura.
Segundo de tudo, diz o outro, o vazio de todo o aborrecimento da sinceridade.
Terceiramente, remata o último, justifica todas as questões no quadro de cortiça que ainda não foram riscadas a caneta.
Nunca percebi. Nunca sei.
Farei o que terei de fazer para calar o silêncio da verdade, para ouvir de perto o som da luz do poste que se ergue na cidade, que poderá cegar-me.
Perdi a tua presença debaixo da ponte. Vi dentro do teu espelho o esfumar de uma pistola.
A ideia de morrer jovem consumiu-me.
O caminho da autodestruição é curto e sem cartografia complicada.
Penso que não se pode acreditar sem se sangrar.
Regurgito o papel de cada fotografia que me incita uma memória e que não quero na veia.
Neste últimos dias, o sol parece brilhar sobre o parque da minha solitude.
Mas o fim de mim não me interessa.
Não me interessa como a tua conversa alheia me pretende salvar, ou a ideia do teu amor promissor.
Encostas-me à parede com a frescura que te cobre o corpo e pedes que falemos, cobres-me a boca se o renegar.
A conversa, o teu corpo.
Pedes-me que volte à vida nem que seja por esta estação. Pedes-me que te olhe, talvez que te minta, talvez que te entregue todas as minhas benções.
Pedes que me sente, que te oiça. Mas quando olhares para mim, estarei a digerir a imagem dos teus pés.
Não me perguntes onde tenho andado. Não tenho conseguido ver por onde tenho ido.
Chamas-me o nome por alguma razão. Não me queres apanhar o fantasma.
Quando olhar para ti, terás a vaguidão entre os olhos.
Sou um todo reduzível a pó. Sou um todo acanhado no casulo de seda que me é inerente à figura. Desabrochei o quanto podia. Não mais me será possível.
Talvez seja melhor assim, talvez toda o desespero nocturno desta desumanidade citadina me pese menos nos ossos colares.
Talvez seja um acto de fé fechar os olhos, pousar o copo vermelho e desfazer as gravatas de todo o meu egoísmo.
Quem sabe ignorar a cidade, deixá-la por pintar, sem postes nem modernidades obscenas.
Pedes que me ofereça, de alguma maneira-
Percorro as ruelas com trapos vestidos e não me encontro.
Talvez não sentir de todo seja a única forma de sentir.
Sento-me. Anseio sempre por me sentar.
As mentiras que me mancham a boca como a nicotina me mancha os dedos cansam-me.
A cura à dormência não me é prometida.
O elixir para a mediocridade não é criação possível.
Então eu que não sinta, nem os homens se sentem, nem tu me peças para renascer.
Pedinchas novamente que me sente, pedes mais uma vez que te oiça, mesmo que não te olhe.
Avisas que me queres olhar por dentro, relembras a antiga luta que tomava conta pelas minhas próprias mãos, o sangue vermelho que me corria nas artérias, a vontade de mudança, o êxtase no meu rosto fabricado pelo olhar do outro, o toque do outro, a expressão do outro.
Não posso mais olhar, não posso olhar mais rostos nem buscá-los na humanidade quando a minha própria se for, toda a minha configuração.
Não posso mais pendura-me sobre o alcatrão nem revisitar os postes cegantes ou a rua regada.
Sento-me, com os homens de preto. Fecho os olhos para não cegar, cerro o rosto para não sentir.
Adormeço.
Adeus deserto iluminado;
adeus frio gelado;
adeus copos vermelhos.
E de novo, o que já não é uma melodia, mas o som pesado de ambas as nossas almas.
Lau'Ra